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Aula do escritor Ian McEwan encara a especulação sobre o fim dos tempos

Repleto de ironia e melancolia, 'Blues do fim dos tempos' reflete a lama na qual a humanidade se atolou


O britânico discorre sobre o apocalipse para tratar da tristeza que se abate sobre os homens
O britânico discorre sobre o apocalipse para tratar da tristeza que se abate sobre os homens (Luiz Munhoz/FP/Flickr)
Jacques Fux*
Em 2007, o renomado escritor Ian McEwan, proferiu uma aula/palestra “apocalíptica” na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Agora, em 2019, ironicamente no momento em que o mundo encara, de fato, a possibilidade do fim dos tempos, a Editora Âyiné nos presenteia com esse texto apócrifo e desconcertante.
O termo “blues” já nos oferece uma ideia do que nos espera nessa pequena obra de arte: “Blue note é uma nota cantada ou tocada com um timbre ligeiramente mais baixo do que o da escala maior, o que faz com que a nota tenha um som distintivamente triste e melancólico; a própria palavra ‘blues’, em inglês, é sinônimo de melancolia. (...) As origens do blues também estão intimamente relacionadas com a música religiosa da comunidade afro-americana, os spirituals. (...) Blue também é a cor que sinestesicamente significa tristeza na cultura norte-americana, por isso surgiu o termo let's sing our blues”.
McEwan enxerga a humanidade repleta de melancolia, abrigada por uma religiosidade sádica e sustentada por uma tristeza perene – tudo isso em virtude de uma expectativa catastrófica fundamentada/estruturada pelo Livro do Apocalipse. “O elenco ou o conteúdo do Apocalipse em suas representações contemporâneas possui todos os espalhafatos de um jogo de computador. Terremotos e incêndios, cavalos galopando e seus cavaleiros, anjos retumbando trombetas, frascos mágicos, Jezebel, um dragão vermelho e outras bestas míticas, além de uma meretriz.
Outro aspecto familiar é a potência dos números: sete selos, sete cabeças de bestas, sete velas, sete estrelas, sete lampiões, sete trombetas, sete anjos e sete frascos. Em seguida quatro cavaleiros, quatro bestas com sete cabeças, 10 chifres, 10 coroas, 24 anciões, 12 tribos com 12 mil membros e, finalmente, o que mais chama a atenção, englobando 19 séculos da mais pura bobagem, a citação: ‘Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e seu número é seiscentos e sessenta e seis’. (Ap 13:18). Para muitas mentes por aí, o número 666 está cheio de significado. A internet está apinhada de especulações sobre códigos de barras de supermercados, chips implantados, códigos numéricos no nome dos líderes mundiais.”
Apesar de catastrófico, a humanidade estaria esperando pulsionalmente por esse fim, como argumenta um testemunho citado por McEwan: “Esperávamos piamente ver Jesus Cristo e todos os anjos sagrados com ele, e que nossos suplícios e sofrimentos, junto com nossa peregrinação terrena, se encerrariam e seríamos arrebatados para ir ao encontro de nosso Senhor vindouro; por isso procuramos nosso Senhor vindouro até o badalar da meia-noite. O dia então tinha acabado e nossa decepção tornou-se uma certeza. Nossas mais sinceras esperanças e expectativas foram destruídas e uma vontade terrível de chorar nos abateu como nunca. Parecia que nem a dor da perda de amigos terrenos tinha comparação. Choramos e choramos até o amanhecer.”
Cálculos matemáticos “precisos” para o dia da destruição total fantasiam o imaginário coletivo – seja para os povos “pacíficos” ou “belicosos”, para as diferentes religiões – muçulmanos, judeus, cristãos – e até para céticos escritores, artistas. O ressurgimento do pensamento apocalíptico se dá pela polarização política, pela ascensão (retorno) do extremismo, pela vontade descontrolada de se esgotar todos os recursos que a Terra oferece, aquecendo-a de tal maneira que os esperados – e já relatados - “terremotos e incêndios, cavalos galopando e seus cavaleiros, anjos retumbando trombetas, frascos mágicos, Jezebel, um dragão vermelho e outras bestas míticas, além de uma meretriz” possam to aparecer. Será que, de fato, essas “bestas míticas” e esse “dragão vermelho” já não apareceram na figura de lideranças políticas apocalípticas e nos vales de larvas, lágrimas e lama que recentemente liquidaram tantas almas e sonhos? Será que queremos, verdadeiramente - enquanto humanos e nações - nos salvar da autodestruição, ou apenas assistir embriagados a esse espetáculo perverso e sádico de um extermínio lento e majestoso?
Vale a pena, sem dúvida, ler o Blues do fim dos tempos para apreciar um pouco mais desse inescapável evento que nos aguarda – seja na vigília, na Quimera ou apenas nas histórias e páginas de um livro escrito ainda a ser redescoberto.

BLUES DO FIM DOS TEMPOS
De Ian McEwan
Editora Âyiné
65 páginas
R$ 21,90

Dom Total

*Jacques Fux é matemático e escritor, autor de 'Meshugá: um romance sobre a loucura' (José Olympio, 2016), 'Nobel' (José Olympio, 2018), entre outros.

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