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História de amor

O olhar para o outro, atencioso e aberto, carrega uma admirável liberdade e a entrega inexprimível


Um negro lindo me ofereceu flores de lata e comprei logo uma dúzia num ímpeto de galanteio à moda antiga
Um negro lindo me ofereceu flores de lata e comprei logo uma dúzia num ímpeto de galanteio à moda antiga
Pablo Pires Fernandes*
Estava sentada no último banco, no fim do balcão. O bar vazio, ela conversava com meu amigo, o dono. Não notaram minha presença até que falei com uma naturalidade incomum: “Este lugar é meu”. Sorriu e retrucou que aquele banco era dela desde sempre. Puxei o do lado, pedi um chope e me sentei ali, ao lado de Luciana pela primeira vez.
Depois do primeiro beijo, do coração acelerado, as noites se encheram de ansiedade, mistura de expectativa e curiosidade, boas e temerosas ao mesmo tempo. Mas eu dormia com um sorriso no rosto como se fosse um adolescente e me deixei levar.
Numa noite sedutora, um negro lindo me ofereceu uma flor de lata e comprei logo uma dúzia num ímpeto de galanteio à moda antiga. Ele me disse, estupefato ao ver o gesto, que eu era um ótimo marido, coisa que ainda não passava em nossas mentes. Depois, ela me soltou: “Nosso buquê de casamento”, mal sabendo que previa o futuro. 
Encantamento, acho que é a palavra. Era um sentimento em ebulição e foi se transformando. Virou amor. Dois anos depois, Luciana chegou à minha casa com 32 caixas, sete malas e um cachorro. O cão me olhava em silêncio, com olhos esbugalhados e curiosos. Parecia me questionar sobre fidelidade e confiança, mas entendeu que não tinha erro. Tudo em casa.
Casa, claro, não é só a morada, é constante construção. É preciso encantamento e brilho. Ah, Luciana!, você não me deixa faltar nada disso! Os risos incontroláveis por motivos banais, a inteligência arguta, as respostas rápidas e perspicazes, o olhar de braveza e as surpresas sem fim.
Pode ser uma foto em Havana, uma fome incontrolável em Amsterdã ou em Madri, uma cerveja no boteco da Praça da Estação ou na muvuca do carnaval. O olhar para o outro, atencioso e aberto, carrega uma admirável liberdade e a entrega inexprimível.
Ela gosta de Drummond e deixa bilhetes de amor pela casa, conta piadas horríveis que me fazem morrer de rir. Compartilha comigo – e me sinto um privilegiado – sonhos, viagens, dores e angústias de qualquer procedência. Ela vê fantasmas (xapiris) e pede para fechar os armários, mesmo deixando todas as gavetas abertas. “Eles estão falando muito e não me deixam dormir”, murmura.
Até hoje me sinto um pouco avexado quando ela me tira para dançar na cozinha um xote do Luiz Gonzaga num chamego sonoro, gargalhando a falta de medo de nossa própria morte. Com meu casaco de general, admiro seus dedos cheios de anéis, seu jeito de mexer no cabelo e sim, vamos tomar aquele velho navio. Não me importa nada além de você, baby.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional nos jornais 'O Tempo' e 'Estado de Minas', onde foi editor do caderno Pensar. É diretor de redação do 'Dom Total'

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