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Convite à Harmonia

Nem o samba de Tom, imortalizado por João Gilberto, conseguiu ficar em uma nota só
Não existe Harmonia de uma nota só ou só de notas isoladas
Não existe Harmonia de uma nota só ou só de notas isoladas (Ivanna Blinova / Unsplash)
Afonso Barroso *
Amigo muito querido pediu-me que escrevesse um texto sobre Harmonia, segundo ele para “enriquecer” uma palestra que iria proferir com esse tema em encontro da maçonaria, confraria à qual pertence há muitos anos. Escrevi. E como achei interessante ao dar o texto por terminado, peço permissão a esse meu amigo para reproduzir trechos seletos nesta crônica.
Chamo a atenção para o fato de ter escrito o termo Harmonia sempre em caixa alta.
Disse eu que a língua portuguesa, assim como todas as outras, tem certas palavras inspiradoras da própria vida. Palavras cujo significado define a convivência humana e traduz boa parte dos desígnios de Deus, que para a maçonaria é o Grande Arquiteto do Universo. Uma dessas palavras, possivelmente a de conteúdo mais denso e profundo, é Harmonia. Palavra singular porque, paradoxalmente, tem sentido plural. Sim, é plural no seu aspecto amplo, na sua verdadeira essência e significado. Quando pensamos em Harmonia, o primeiro e necessário exemplo que nos vem à mente é a música instrumental, especialmente a dos grandes mestres. Não existe Harmonia de uma nota só ou só de notas isoladas. Para ter Harmonia, a música precisa de uma combinação de notas. De duas, de três, de quatro, de muitas tocadas simultaneamente. O próprio “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim, imortalizado por João Gilberto e seu violão mágico, não ficou apenas em uma nota, teve de incorporar outras para buscar Harmonia em acordes, mesmo que dissonantes, e assim completar e aperfeiçoar a bela composição do cancioneiro da Bossa Nova.
O mesmo se dá com as pessoas. Não há Harmonia num único indivíduo. É bem verdade que um ser humano sozinho, isolado, pode estar em Harmonia consigo mesmo, e é saudável que esteja. Mas, antes, ele precisa estar em Harmonia com as pessoas que o cercam. Com seus parentes, seus amigos e todos aqueles que com ele partilham o lar, a convivência, a comunidade. Ninguém jamais estará em paz consigo mesmo se não estiver em paz com os seus semelhantes.
Harmonia, portanto, quer dizer diálogo. Solidariedade. Comunhão de ideias. Mesmo que sejam ideias divergentes, elas acabam se integrando e levam, no final das contas, à Harmonia, que é uma espécie de anseio coletivo, de vocação universal. Só os radicais praticam a desarmonia. Mas esses são seres à parte, e devem ser deixados à sua mercê, pois estão condenados a uma permanente e insanável ausência de Harmonia interna e externa. Estarão sempre sós, sem vida, sem alma, sem mundo.
Cito aqui uma das afirmações mais emblemáticas que conhecemos, produzida pela sabedoria de Cícero, o grande filósofo e tribuno romano. Disse ele: “Dentre todas as sociedades, não há nenhuma mais nobre e mais estável do que aquela em que os homens estejam unidos pelo amor”. Troquemos a palavra amor por Harmonia e a frase de Cicero terá exatamente o mesmo sentido.
“Se existir aqui nesta nossa comunidade alguém que assim não pense, alguém que tenha vocação para desconstruir ou até para destruir, ou seja, para desarmonizar, melhor que se desligue de nos outros, que busque outras companhias e nos deixe em paz. Em palavras menos suaves, que vá baixar em outro centro”.
Escrevi este último parágrafo entre aspas, porque foi assim que o meu amigo concluiu sua fala na reunião da loja maçônica. Disse que foi muito aplaudido.
*Afonso Barroso é jornalista, redator publicitário e editor

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