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O casarão da loba

Ficou uma beleza a casa que o artista Beleza entalhou numa prancha de jaqueira
Loba capitolina amamentou Rômulo e Remo
Loba capitolina amamentou Rômulo e Remo (Jastrow/ Wikimedia)

Afonso Barroso*
— Pai, eu vi uma cachorrona dando de mamar a dois meninos.
Esse garoto tá ficando doido, pensou o pai Beleza, cujo apelido fora extraído da própria feiura. Pardo sarará, cabelos espessos jamais lavados, nariz chato e rosto redondo, era mesmo feio o Beleza. Mas, como a feiura costuma vir acompanhada de alguma boa qualidade, Beleza tinha uma qualidade de fazer inveja: exímio entalhador, era conhecido entre os artesãos de BH como o “formão de ouro”. Aos domingos, bem de madrugada, metia um punhado de peças dentro do velho Fiat Uno e saía com o filho do barracão onde moravam, na Rua do Turvo, entrada da Pedreira Prado Lopes, para vender sua arte na feira da Avenida Afonso Pena.
O pequeno Oró ajudava-o, e muito. Menino esperto. Tinha só oito anos, mas era ele que visitava as oficinas de marceneiros da Rua Itapecerica, onde comprava ou ganhava sobras de madeira que o pai depois buscava. Já havia passado muitas vezes pelo casarão da Rua Itapecerica que ostentava, no alto, a magnífica escultura em bronze, mas nunca tinha reparado.
— É ali, pai, olha lá a cachorra.
— Não é cachorra não, filho. É uma loba. Lobos parecem cachorros. Depois eu te conto a história dessa loba – ele disse e deixou o pequeno com os olhos arregalados de curiosidade.
A feira foi boa naquele domingo. Beleza vendeu várias peças e voltou pra casa com algumas encomendas. Assim que chegaram, o menino mal esperou entrar:
— Pai, que dia é que o senhor vai contar a história da loba?
— Conto hoje mesmo. Mas vamos almoçar primeiro.
Acendeu o fogão e esquentou feijão, arroz e dois pedaços de carne cozida. Sentaram-se à mesa, lado a lado, num banquinho. O menino comia com pressa, como se a pressa também apressasse a história que o pai ia contar. Mas Beleza comia devagar. Só depois do café e de acender um cigarro foi que atendeu à ansiedade do seu garoto.
— Houve um tempo em que Deus não era um só – começou com ar professoral. – Havia muitos deuses. Um deles, Marte, um dia casou com uma moça chamada Sílvia, e ela teve dois filhos gêmeos. Deu a eles os nomes de Rômulo e Remo. Mas o rei, que se chamava Amúlio e era muito mau, não gostou nada daquele casamento, porque ele é que queria casar com a Sílvia, e por isso se vingou. Mandou prender a Sílvia num porão, colocou os gêmeos num cesto e jogou no rio. Dias depois o cesto parou no matagal da margem e os meninos foram encontrados por uma loba. E ficaram mamando nela.
— Então é aquela loba da casa...
— É, sim. Os meninos Rômulo e Remo cresceram junto com pastores. Como o leite de loba é muito forte, eles se tornaram dois garotos bem parrudos. Cresceram caçando animais pra comer. Mas viraram bandidos também. Roubavam das pessoas que passavam em caravanas pela região. Um dia Remo levou a pior. Foi capturado e levado para uma cidade chamada Alba Longa. Rômulo ficou danado da vida, e no dia seguinte foi atrás dos raptores. Achou o esconderijo onde tinham aprisionado seu irmão e, como era muito forte, derrubou os raptores e libertou Remo. Os dois então decidiram voltar ao local onde tinham sido amamentados pela loba, e fundaram lá uma cidade. É a cidade de Roma, que hoje é a capital da Itália. Os donos daquela casa na Rua Itapecerica devem ser italianos, por isso mandaram colocar aquela loba lá em cima. Pra lembrar a terra deles.
— Legal, pai. O senhor bem que podia fazer aquela casa na madeira.
— Oró, que ideia boa você me deu!
E a partir dessa dica do filho, Beleza resolveu entalhar a casa da loba. Passou horas em frente ao número 579 da Rua Itapecerica com a prancheta na mão, desenhando. Depois, iniciou o entalhe numa prancha de jaqueira.
Um dia o pequeno Orozimbo chega triste ao barracão.
— Pai, levaram a loba. Ela não tá mais lá.
A notícia trazida pelo garoto chegou no momento em que Beleza acabava de dar o último retoque nas tetas da loba. Esculpir o animal e seus dois filhinhos humanos a mamar tinha sido o maior desafio. Parou, olhou com pena para o filho que chorava baixinho, depois para a escultura, e logo concluiu que fizeram aquilo pra dificultar o tombamento da casa. E ficou pensando como hoje em dia valores como patrimônio histórico não valem nada para certas pessoas. Não lhes interessa história ou arte, e sim lucro, dinheiro.
Foi dormir naquela noite feliz com a sua obra mais recente, mas triste pela tristeza do filho e remoendo a decepção com o gênero humano. Desviou o pensamento para a mulher que se fora (o diabo que a carregue), pensou no seu trabalho, pensou na sua vida feliz de artista, pensou no Orozimbo, que menino bom, graças a Deus. Dormiu e sonhou com o entalhe da casa da loba, que ficou uma... beleza. Ao acordar, algo puxou seus olhos para o canto onde deixara o entalhe.
Assombrado, Beleza viu sua obra desfigurada. A loba, que esculpira com tanto capricho, havia desaparecido.

*Afonso Barroso é jornalista, redator publicitário e editor

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