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Ampulheta para o 'infinito'

Dê-nos tempo de dar tempo ao tempo, de suplicar ao tempo mais tempo, de orar compungido por outros tempos
Cai vagarosamente a areia na ampulheta imaginária de apontamento de tempo ‘infinito’, imprevisível duradouro intervalo interveniente de horas, dias, meses a fio em calendário indefinido
Cai vagarosamente a areia na ampulheta imaginária de apontamento de tempo ‘infinito’, imprevisível duradouro intervalo interveniente de horas, dias, meses a fio em calendário indefinido (Aron Visuals / Unsplash)

Eleonora Santa Rosa*
Sutis transformações operadas a cada madrugada em silêncio desafiador do ofício solitário de descobrir o véu, de despir ilusões (não sonhos) e decodificar o que ainda não resta claro, sequer mesmo traçado ou mesmo antes imaginado.
Estação propícia à exoneração, superação de equívocos, derrotas, vitórias, vícios, suplícios, apequenadas histórias, bobagens ilusórias, tempo que invoca e provoca a delicada complexa necessária tarefa de perscrutar-se a si próprio nos meandros internos desdobrados em labirintos que demandam sentido apurado.
Cai vagarosamente a areia na ampulheta imaginária de apontamento de tempo ‘infinito’, imprevisível duradouro intervalo interveniente de horas, dias, meses a fio em calendário indefinido. Parada entre ausências cada vez mais presentes e presentes cada vez mais ausentes. Ajuste das dimensões do tempo em exercícios de regressão e prospecção sob o signo do inesperado, em ritmo lento e cadenciado.
Escolhas buriladas extraídas entre acertos e desacertos garimpados em contabilidade íntima, memória atravessada pela história passada a limpo. Descontaminação do solo interno, recomposição do terreno minado pela erosão emocional.
Atravessar o despenhadeiro, aprender a sabida lição de humanidade e humildade, encarar de frente o buraco do acaso em que estamos, passageiros compulsórios da nau dos insensatos que singra e sangra os mares, contamina os ares e a terra em direção à extinção da espécie.
Ampulheta abissal, dê-nos tempo de dar tempo ao tempo, de suplicar ao tempo mais tempo, de orar compungido por outros tempos, como a letra de Gil :
Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito
Que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo socorrei
Pensamento, mesmo fundamento singular
Do ser humano, de um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas, pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo socorrei


*Eleonora Santa Rosa é ex-secretária de estado de Cultura de Minas Gerais e ex-diretora executiva do Museu de Arte do Rio (MAR)

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