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As palavras e esboços incômodos do 'Caderno de Talamanca'

Obra do romeno Emil Cioran aborda a morte e questiona o lugar em que estamos no mundo
Retrato do autor por Ewa Klos: tormento e premonição
Retrato do autor por Ewa Klos: tormento e premonição (Philippe Matsas/Leemage/AFP)

Jacques Fux*
Caderno de Talamanca é um livro repleto de aforismos, pensamentos, regurgitações e filosofias polêmicas e mal-humoradas; frases de impacto e profundas – e também textos banais e despojados; suicídio, destruição, crítica, obsessão e o encontro com o vazio da existência. Um livro nada politicamente correto, como só se pode dar ao luxo de escrever um escritor com tamanho reconhecimento (e já morto) ou, infelizmente, políticos extremistas que tanto tem nos assustado hoje em dia.
O autor, Emil Cioran, também conhecido como o “especialista no problema da morte” e “o rei dos pessimistas”, nasceu em 1911, em Rasinari, na Romênia. Publicou aos 22 anos seu primeiro livro, Nos cumes do desespero. Em 1937, mudou-se para a França, onde escreveu a maior parte de sua obraEm 1987, publicou seu último trabalho Confissões e anátemas. Morreu em 1995, em Paris.
A Editora Âyiné publicou mais um livro de Cioran, escrito no verão de 1966, “durante a estada do escritor romeno em Ibiza, à beira de um abismo nada metafórico, um caderno de páginas ardentes, dentre as mais intensas e radicais já escritas pelo escritor”.
Se é para criticar a literatura – e esboçar uma certa aversão aos livros que falam sobre livros, - ao universo encantado como uma metáfora de uma biblioteca infinita -, Cioran trava um duelo com um dos maiores escritores e ensaístas de todos os tempos: Jorge Luis Borges. Segundo o pensador romeno, “Borges – um impostor, um Paulhan de sucesso. Todos os seus pontos de partida são literários; pior: livrescos.
Foi feito para ter sucesso na França, onde se ama em segredo tudo que é artifício, truque e falsidade. Borges ou a astúcia universal.” Será que Borges almejava o sucesso, ou o seu sucesso incomodou em demasia Cioran? Será que uma literatura tão potente em referências e intertextualidades – e também em jogos, enigmas, paradoxos e misticismo – é uma afronta ao que pensa e escreve o “rei dos pessimistas”? Será que essa crítica vale ser levada em consideração ou apenas desconsiderada e ironizada?
Cioran continua enfrentando e desconstruindo o argentino: “Borges cita sem dar nenhuma referência (nem data, nem local, nem nada) o título de um livro de Fechner: Vergleichende Anatomie der Engel (Da anatomia comparada dos anjos). Claramente ele não o leu, nem mesmo viu. Vou ter de verificar em Paris. Será que o autor é um psicólogo que cita manuais? Parece-me improvável. Sabe-se lá. Pode ser que ele tenha tido várias fases na vida”.
Borges adorava subverter, Cioran. Ele gostava de brincar com a recepção, com as teorias, com as referências, citações e invenções literárias. Borges é um gozador – ele ludibriava narrativas, adulterava as fontes, incomodava e desconfortava o leitor. Assim como você, Cioran, bem como você – porém de uma forma talvez mais elegante e disfarçada.
Dando continuidade à sua pena afiada, o escritor romeno agora fala da literatura James Joyce:  “Um crítico inglês fala com muita propriedade de ‘frases despregadas’ em Joyce. É um estilo moído, frases descontínuas, dispostas umas após as outras, como se fosse uma demonstração; para mim é uma leitura penosa”. Seus pensamentos também são ‘despregados’, Cioran – e é justamente aí que você se encontra como um leitor de Joyce? Quando você diz que ser “penoso” ler Joyce, será que você não estaria tecendo um elogio? Uma constatação de uma boa e universal literatura? Vai saber seus motivos – e suas verdades.
Em relação à política, Cioran também é categórico: “Os direitistas fazem-me desgostar da direita; os esquerdistas, da esquerda. Na verdade, com um direitista eu sou um esquerdista e com um esquerdista, um direitista”. Como Cioran enxergaria os extremos e o maniqueísmo contemporâneo? Como o pensador versaria sobre questões tão polêmicas e importantes que afloram nos debates atuais? Fugiria, tomaria partido ou iria para Talamanca sofrer um pouco mais?
Sim, Cioran, tudo é fruto da importância descabida dada ao homem e suas letras – como você mesmo postulou: “Todas as religiões deram importância desmesurada ao homem: é por essa razão que elas gozam de tamanho crédito.” Há que se suspender, então, o homem do mundo? Acabar com a religião? Desmascarar e desnudar a razão inoportuna que nos acompanha ao longo da evolução humana?
Você, Cioran, defende o pensador ou o escritor que vive egóico em sua obra? Você se enxerga de qual maneira?  “O que distingue o pensador do escritor é que o pensador escreve somente quando tem algo a dizer. (Acabo de formular mais uma promessa do que uma constatação.)” Seu livro tem, de fato, algo a dizer – ou só são polêmicas e importunações?
E sobre a culpa e o pecado do escritor, Cioran, você também carrega e suporta toda essa responsabilidade judaico-cristã? “Na ordem do espírito, toda produção feita sem necessidade é um pecado contra o espírito. O escritor, como tal, encontra-se em estado de pecado mortal”. Qual seria o nosso pecado mortal – a filosofia, a arte ou a literatura?
Caderno de Talamanca é um texto escrito para incomodar e para nos fazer refletir sobre a crítica, sobre o pensamento, sobre o lugar de fala e o politicamente correto, muito bem-vindo nos dias atuais.

CADERNO DE TALAMANCA
De E. M. Cioran
Editora Âyiné
46 páginas
R$ 21,90

*Jacques Fux é professor da Escola de Engenharia de Minas Gerais (EMGE), matemático e escritor, autor de 'Meshugá: um romance sobre a loucura' (José Olympio, 2016), 'Nobel' (José Olympio, 2018), entre outros.

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