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Em busca de humildade: que os nossos olhos se abram!

Para nos salvar e salvar o planeta, precisamos inverter a lógica das relações entre nós e a natureza, e entre nós mesmos
Precisamos de humildade para ver o raiar do sol na história
Precisamos de humildade para ver o raiar do sol na história (Pablo Heimplatz/ Unsplash)

Alexandre A. Martins*
Se você leu alguma coisa que eu escrevi nas últimas semanas, certamente foi relacionada às questões de bioética que estamos enfrentando devido à pandemia do coronavírus e à Covid-19. Como bioeticista e, principalmente, como teólogo, busco lições que esse micro-organismo pode nos dar. Muito provavelmente, você, leitor deve estar sobrecarregado com tantas informações e notícias sobre o coronavírus e os problemas que a pandemia tem causado. É muita coisa real e muita coisa falsa. As redes sociais potencializaram a velocidade e a quantidade de informações que recebemos. Isso se ampliou ainda mais com o isolamento social, tornando a difusão e o consumo de informação ainda maiores, pois agora muitos estão em casa apenas consumindo e transmitindo as informações que recebem. Infelizmente, muitas delas são falsas e fazem um desfavor para a sociedade e a luta contra o coronavírus.
Para os católicos, como eu, e muitos outros cristãos, estamos na Semana Santa. Os judeus estão celebrando quase que ao mesmo tempo a Páscoa judaica e os muçulmanos brevemente entrarão no Ramadã, tempo de grande importância espiritual para a religião islâmica. Nessas três festas religiosas, um elemento comum é a humildade e a libertação. Nada como um momento como o que vivemos para refletirmos sobre humildade e libertação! Em meio a tanta informação sobre o coronavírus e a Covid-19, gostaria de refletir sobre a lição de humildade que o contexto atual nos proporciona.
Na bênção Urbi et Orbi, o Papa Francisco  afirmou que a falta de humildade do ser humano, regada pela sua avareza, não parou de explorar o mundo mesmo diante dos gritos da terra e dos seus pequeninos: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente". Nós, seres humanos – talvez a espécie mais complexa e ‘nobre’ do planeta terra, a que recebeu, segundo a tradição judaico-cristã, a missão de cuidar de toda a criação – transformamos a nossa existência em um ato de exploração sem limites da natureza e dos membros da nossa própria espécie, por meio da opressão do fraco pelo mais forte. Tornamos o mundo doente. Acreditando no progresso sem limites, exploramos a natureza e oprimimos os mais frágeis, exacerbando a injustiça contra os pobres. Com os ouvidos moucos, não escutamos o clamor dos pobres nem o grito da terra.
Por meio de um tweet, Leonardo Boff chamou a atenção para uma aparente contradição entre as espécies. Diz ele: “Fato curioso: um organismo pequeníssimo, só visível num microscópio eletrônico, primitivo no reino da vida, ataca e até pode matar o ser mais complexo: o ser humano. Toda soberba é vã. O vírus nos dá uma lição de humildade e de empatia entre todos, se não mal sobreviveremos”. Achávamos que poderíamos controlar tudo e todos por meio da “nossa avidez de lucro” com um sistema econômico baseado na exploração do outro e no progresso ilimitado. Perdemos a humildade. Estamos destruindo a natureza e a nós mesmos. Para nos salvar e salvar o planeta, precisamos inverter a lógica das relações entre nós e a natureza, e entre nós mesmos. Abandonar a lógica da exploração para viver a da colaboração, de modo a realizar a missão de cuidadores da criação; não somos donos do planeta, como muitos pensam.
Nessa Semana Santa, tenho meditado um texto do Evangelho de João. Textos desse Evangelho são os que mais aparecem nas celebrações litúrgicas do Tríduo Pascal; passagens que nos contam os últimos dias de Jesus, com o lava-pés e a narrativa da paixão. Contudo, a passagem que tenho meditado é o capítulo 9, no qual Jesus cura um cego de nascença e inverte a lógica do entendimento da relação entre Deus e o ser humano. No texto, um rapaz cego se aproxima de Jesus pedindo ajuda. A concepção religiosa dominante na época atribuía a doença a um castigo de Deus devido ao pecado. Como esse jovem já nascera cego, o pecado teria sido dos seus pais, por meio de uma transmissão geracional da punição divina. Não é de estranhar que até alguns discípulos de Jesus tinham essa concepção. Jesus inverte essa falsa lógica para mostrar a verdade da relação com Deus, um pai misericordioso e não punitivo: “Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus" (Jo 9, 3). A doença, a maldade, a exploração socioeconômica, um desastre e uma pandemia não são castigos de Deus porque a humanidade desviou dos seus caminhos pelo pecado. Mas muitas dessas coisas, especialmente a exploração que gera injustiça, pobreza e adoece a natureza, são consequências naturais da ação descontrolada do ser humano em sua “avidez pelo lucro.” Uma relação simples de causa e efeito. No caso de alguém com uma deficiência congênita, como um cego de nascença, já sabemos, graças à ciência, quais são as causas, como por exemplo, uma causa genética. Não tem nada a ver com punição divina. Mesmo sem a ajuda da ciência moderna, Jesus já sabia disso porque ele conhecia intimamente Deus, um pai amoroso que está com seus filhos e filhas no momento do sofrimento. Assim, a dor torna-se uma oportunidade para Deus mostrar seu amor, que aquece e fortalece o coração das pessoas. Com esse coração cheio de amor misericordioso, buscamos soluções históricas para problemas históricos.
Nesse novo mundo de navegação rápida e gigantesco acúmulo de informações, há pessoas cristãs, católicas e de outras denominações, espalhando que a pandemia do coronavírus é um castigo de Deus pelos pecados da humanidade. Isso não é verdade.  Jesus nos mostrou isso e, atualmente, a ciência nos apresenta as causas. Dessa forma, sabemos empiricamente o que levou ao aparecimento do coronavírus, à doença que ele causa e como se espalhou pelo mundo.
Em meio a essa pandemia e todo o sofrimento que ela tem causado pelo Brasil e pelo mundo, Deus se mostra presente junto a nós como um alento que nos dá esperança e forças para encontrar soluções com o uso da razão, do discernimento e das ciências. O mesmo Deus que nos alenta, também deseja que nos unamos em solidariedade e cuidado, escutando o clamor dos pobres e o grito da natureza.  Mas, para isso, precisamos reconhecer que não podemos tudo; lição oferecida por esse micro-organismo para a nossa tão complexa espécie.
Vamos sair dessa pandemia e o sol vai raiar novamente, como aconteceu no mistério pascal de Cristo, no qual a cruz não é o fim, mas a luz da ressureição. Infelizmente, muitos não verão, aqui, esse sol porque a Covid-19 lhes ceifaram a vida; mas confiamos na ressureição. Precisamos de humildade para ver o raiar do sol na história. Muitos daqueles que sempre acharam ver e seguiam confiantes na exploração ilimitada da natureza, não verão o novo sol. Eles vão forçar o retorno à logica antiga de dominação. Os que não o viam, verão e terão a oportunidade de guiar o novo mundo, mas para isso é preciso humildade para reconhecer que não são os donos do mundo, mas parte da natureza interconectada que cuida e colabora.

*Alexandre A. Martins é doutor em bioética e ética teológica, e pós-doutor em democracia e direitos humanos, professor e pesquisador na Marquette University em Wiscosnin, EUA. Autor de 'Bioética, saúde e vulnerabilidade: em defesa da vida dos mais vulneráveis' (Paulus, 2011); 'The cry of the poor: liberation ethics and justice in health care' (Lexington Books, 2020)

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