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Os viajantes recolhem as mochilas

Sinto-me paradoxalmente feliz por estar preso nas recordações das viagens que fiz
Paul Theroux, Joel Silveira, Gabriel Garcia Márquez, Ryszard Kapuscinski , Bruce Chatwin e outros fizeram registros muito além da mera impressão turística que lista restaurantes e lugares a serem visitados
Paul Theroux, Joel Silveira, Gabriel Garcia Márquez, Ryszard Kapuscinski , Bruce Chatwin e outros fizeram registros muito além da mera impressão turística que lista restaurantes e lugares a serem visitados (Unsplash/ Daria Salikova)

Ricardo Soares*
Recolhido na pandemia aproveito como milhões de seres humanos para organizar a bagunça externa já que a interna nessa hora tá difícil. Anos e anos de papelada acumulada, quase sempre inutilmente. Recados, bilhetes, velhas cartas, recortes que dão conta de um tempo que já passou. E no meio disso tudo registros de “minha passagem sobre a Terra” como diria o genial Artur Bispo do Rosário.  Esses registros não servem para que eu faça um manto que me leve para a eternidade como fez o artista  mas me dão conta de que  esse caleidoscópio de registros me dê a certeza de que foram as viagens, muitas delas, que me fizeram um pouco melhor.
Numa prateleira cheia de livros acima de onde está o computador em que escrevo tenho maravilhas sobre viagens, muitas escritas por craques do gênero como Paul Theroux, Joel Silveira, Gabriel Garcia Márquez, Ryszard Kapuscinski , Bruce Chatwin. Escritores que fizeram registros muito além da mera impressão turística que lista restaurantes e lugares a serem visitados. Gente que desperta a vontade imediata da gente visitar os locais onde eles estiveram.
Pois agora a boa e velha literatura de viagem e os deslocamentos no atacado e no varejo estão comprometidos. O que faz esse tipo de relato mais saboroso ainda, mais utópico, mais fantasioso.  Um pouco o nem tanto admirável mundo novo onde o perigo é desbravar, atravessar fronteiras, espiar e tocar o quintal do próximo.  Eu , modestamente, olho o velho jipe vermelho na garagem, namoro o passaporte na gaveta e me sinto paradoxalmente feliz por estar preso nas recordações das viagens que fiz . Me socorro nos escribas que viajaram mais do que eu e, mais do que isso, penso na utopia das viagens que ainda farei quando todas as fronteiras da percepção estarão inexoravelmente mudadas pós-pandemia. Ou não porque o ser humano é sempre o algoz de si mesmo.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 8 livros, dirigiu 12 documentários.

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