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Já não somos os mesmos

Não há nada, macro ou micro, que permaneça tal como era meses atrás, antes da pandemia
O momento que estamos vivendo tem exigido muito de nós e a pastoral da escuta seria fundamental
O momento que estamos vivendo tem exigido muito de nós e a pastoral da escuta seria fundamental (Ethan Sykes/ Unsplash)

Tânia da Silva Mayer*
Desde que a pandemia de Covid-19 se instalou em nossas sociedades nossos hábitos e costumes deixaram de ser os mesmos. Podemos dizer que fomos obrigados a romper com a rotina que nos fazia acordar e ir todos os dias, no mesmo horário, para o trabalho ou para a faculdade ou mesmo para desempenhar todas as nossas funções cotidianas. Tudo o que estávamos acostumados a fazer sofreu alguma alteração. No fundo, não há nada, macro ou micro, que permaneça tal como era meses atrás. Somos desafiados a reinventar nossos dias, estabelecer novos horários, reprogramar atividades, reavaliar métodos de ação, entre outros. Realmente a vida mudou.
Essa mudança nos faz outros para esse tempo porque ela atingiu algo que nos é constitutivo, individual e coletivamente, nossos ritos. Somos pessoas, seres rituais. O rito faz parte do que somos com os outros no mundo. Precisamente, ele está relacionado à rotina, que nos situa no aqui e agora da existência dada objetivamente e, no entanto, nos faz tocar o novo que aparece nas brechas do tempo vivido. Chico Buarque bem se expressou na canção Cotidiano: "Todo dia ela faz tudo sempre igual [...]". A rotina é tão familiar quanto nosso respirar. Uma vida vivida sem nenhuma rotina é impensável, porque temos a necessidade da segurança que os ritos cotidianos nos dão. Mas há rotinas e rotinas, que vão desde aquelas muito exigentes até algumas mais flexíveis. Quando uma pessoa pende mais para flexibilizações, diz-se que ela é aventureira.
Mas aventureiras são também aquelas pessoas capazes de se impactar na contemplação do mundo à sua volta nos afazeres rotineiros. Mas o momento que estamos vivendo tem exigido muito de nós. Além de abdicar de uma série de ações que compunham nossa rotina, ainda foi preciso que aprendêssemos abruptamente outros ritos novos. Ritos muito mais duros, que são frutos das leis em razão das necessidades emergentes e não de nossas histórias. Por isso é que podemos dizer que a pandemia, ao mexer com nossos ritos, atingiu-nos intrinsecamente. Passamos uma vida inteira aprendendo a como cuidar da higiene pessoal, cumprir horários e calendários, cumprimentar e relacionar com as pessoas, etc. Tudo isso foi sendo gravado em nossa memória e também em nosso corpo. Mas agora não tivemos tempo suficiente para entranhar os ritos que precisamos viver nesse momento para nossa sobrevivência, por isso eles são estranhos e dolorosos, para o corpo e para a mente.
Embora as pesquisas com dados científicos não sejam de fácil acesso para todas as pessoas, olhando à nossa volta já percebemos como nossos corpos e nossas mentes estão adoecendo cada dia mais. Desde as más posturas para o desenvolvimento dos trabalhos home office que provocam dores lombares de toda sorte até os altíssimos picos de estresse e ansiedade já são percebidos em amigos, colegas, familiares. E em plena pandemia não é só o vírus que adoece. O corpo jogado o dia inteiro no sofá e o ócio tedioso só aceleram processos de depressão e baixa autoestima.
Mas o que isso tem a ver com a fé? O papa Francisco inaugurou seu pontificado conclamando os cristãos para constituírem a Igreja em saída. A proposta era passar da conservação para a missionariedade. Antes da ascensão das televisões e rádios católicas, era impossível pensar a evangelização sem o corpo a corpo. Mas nesse tempo de pandemia, a Igreja que é chamada à saída tem encontrado dificuldades para uma evangelização corpo a corpo, isto é, a evangelização do encontro. Em contrapartida, tem se configurado numa Igreja de lives e transmissões. Uma Igreja virtual, distante, fria e barulhenta, que ainda não descobriu como pode se silenciar para ouvir as angústias e os sofrimentos dos outros durante esse tempo caótico de pandemia.
Obviamente, a Igreja que ocupa as redes não deve ser um consultório para a terapia. Mas ao invés das muitas palavras dos pastores e pastoralistas, por que não fazermos funcionar o rito da escuta, fecundar a pastoral da escuta e torná-la viável nesse tempo que anda mexendo profundamente com a gente e ser, em verdade, uma Igreja para além dos documentos e organismos pastorais? O anúncio do Evangelho é o encontro com uma vida, quando as existências podem narrar suas angústias e tristezas, alegrias e esperanças, bem para além da propagação descontrolada dos conteúdos.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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