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Leitores em extinção

Preguiça e excesso de informação estão mudando nossos hábitos
Apenas 8% dos brasileiros em idade produtiva são considerados plenamente capazes de entender e se expressar através da leitura e da escrita
Apenas 8% dos brasileiros em idade produtiva são considerados plenamente capazes de entender e se expressar através da leitura e da escrita (Unsplash/ Seven Shooter)
Fernando Fabbrini*
Atenção, leitor, para a primeira frase: “o cachorro está pulando”. Segunda frase: “o cachorro está pulando de alegria porque seu dono chegou em casa trazendo um osso”. Entre esses dois cachorrinhos felizes há hoje um buraco que separa milhões de pessoas.
Pesquisas realizadas nos EUA e Europa revelam que cerca de 35% dos indivíduos na faixa de 16 a 65 anos não se dispõem a entender porque o cachorro está pulando. É preguiça; uma preguiça assustadora associada à ansiedade. Por isso, leem apenas as primeiras palavras e desistem do resto. No Brasil é assim também. E pior: além do analfabetismo histórico que alcança quase 12 milhões, apenas 8% dos brasileiros em idade produtiva são considerados plenamente capazes de entender e se expressar através da leitura e da escrita.        
Se você continuou a ler minha coluna, tudo indica que é um deles. Você pode compreender e elaborar textos de diferentes tipos – um e-mail de trabalho, uma mensagem de amor ou um simples recado num pedaço de papel. Também está apto a entender uma descrição de algum assunto explicado na sala de aula ou lido num livro. E mais: pode chegar ao fim de uma notícia de jornal ou ao término desta crônica com uma opinião formada sobre o posicionamento ou estilo do autor.
No livro Entendendo as palavras, o linguista italiano Tullio de Mauro afirma que a escrita põe em jogo a capacidade total de inteligência que fomos dotados. Quando lemos, o nosso cérebro inicia um trabalho sofisticadíssimo em centésimos de segundos. Em primeiro lugar, o cérebro identifica os estímulos visuais dos sinais gráficos – as letras – decodifica-os e estabelece relações de lógica e conectividade. Na sequência, nosso cérebro "interpreta" (reconstrói o sentido de cada palavra colocada junto à outra); "elabora" (une o sentido de cada período ao anterior) e finalmente "associa" o conteúdo geral ao contexto, baseado em nossa memória, capacidade lógica, informação e cultura geral.  
Quais são as causas da preguiça que impede este belo funcionamento de nosso cérebro? Na maior parte, são subprodutos indesejáveis da era digital. O século 21 chegou acelerado e as informações que recebemos foram contaminadas pela mesma velocidade – às vezes danosa. Há um excesso de mensagens no celular; lembretes via SMS; posts no Facebook e Instagram, apelos sob todas as formas. Exageros marcam a chatice de certos grupos de Whatsapp, dos quais muita gente já se safou (sou um deles). Liga-se o telefone de manhã e ali estão dezenas de "bom-dia", imagens carinhosas de gatinhos, céus estrelados, anjos; piadinhas; frases de autoajuda, receitas de felicidade. Como pode o cérebro interpretar, elaborar, associar e reagir a essa avalanche diária de informações?
Outro motivo da preguiça mental é a falta da leitura. Falo de livros, aquela velha e boa forma linear de contar histórias, expor ideias e estimular nossa imaginação. Se no Brasil 44% das pessoas não leem nada, quantas lerão um ou mais livros num ano? Da carência de informações e de argumentos contraditórios inteligentes nascem as bobagens rasteiras que povoam as conversas desprovidas de qualquer reflexão. Os jovens, que agora só veem a vida através de seus celulares, não costumam passar do primeiro parágrafo de um livro. Por isso apenas repetem, sem checar, as asneiras que escutam por aí – e, de tabela, afundam na redação do vestibular.
Entre outras coisas, ler é aceitar ficar sozinho, imerso nas profundezas de nosso cérebro e de nosso coração. Infelizmente, nesses tempos eletrônicos, cada vez menos pessoas se dão ao direito desse prazer enriquecedor e estimulante.
Terminei minha coluna. Você, que chegou até o final, gostando ou não do que escrevi, pode se orgulhar: é um espécime em extinção. 
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália

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