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Longos cabelos eternos

Quem sabe um dia eu saia atrás das lembranças dos seus cabelos longos
Os cabelos do amor que eu perdi ou talvez jamais tenha achado
Os cabelos do amor que eu perdi ou talvez jamais tenha achado (Unsplash/ Luke Pennystan)

Ricardo Soares*
Porque hoje é segunda e amanhã será segunda e depois seguirá sendo segunda nesses dias invertidos de pandemia. Porque poderia ser domingo ou quarta, pois tudo segue junto e mal misturado, com imprecisão sobrando para todo lado e as nossas semanas são acúmulos de dias parecidos, horas que se arrastam na mesma máxima de que viver é urgente, importante, fundamental.
E como é segunda entre tantas segundas, eu escondo mágoas atrás de tapumes e jogo para baixo do tapete da memória palavras hostis que andei dizendo e professo minha fé inabalável no amor como única forma eficaz de combater o ódio e o preconceito. E aí procurando abrigo nos seus longos cabelos – bem cuidados e escorridos –, atrás deles sei que tudo posso, olhando o mundo da perspectiva de uma teia protetora e amorosa. Os cabelos do amor que eu perdi ou talvez jamais tenha achado.
E como é segunda-feira e creio num país possível e melhor do que esse, eu fico aqui me convencendo do quanto a poesia é necessária e do quanto tudo vale a pena quando a alma não se apequena e seguro na mão de Fernando Pessoa e Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Ana Cristina César e tomo um trago ainda vespertino com Paulo Leminski e outro ainda com Roberto Piva  e olho para os mais antigos e românticos que se foram de tuberculose e dores de amores como Castro Alves e Álvares de Azevedo.
Tenho estado muito sossegado nessas segundas com cara de segundas. Sossegado, porém apreensivo. E certo de que talvez, quem sabe um dia, por alamedas enfim desconhecidas, eu entenda tudo isso que anda passando e saia atrás das lembranças dos seus cabelos longos, lindos e escorridos e enxergue novas janelas. Por enquanto, ainda velhas mazelas me atormentam e eu sonho, sei que um pouco fúnebre, com seus cabelos crescendo ainda mesmo depois de você morta. Porque bem forte essa imagem me ficou de uma história de Garcia Márquez.
Não, não gosto de pensar que nem a Inês e nem você sejam mortas. Mas a sua finitude me dá um alento a partir do instante em que tenho certeza que mesmo seus cabelos longos, sendo eternos, eles hão de adubar uma terra nova, rumo ao futuro. Sem tristeza, sem pandemia, na mais completa transcrição de amor e alegria.

*Ricardo Soares é diretor de tv, escritor, roteirista e jornalista. Publicou 9 livros, dirigiu 12 documentários. No site da editorapenalux.com.br encontra-se em pré-venda seu novo livro “Devo a eles um romance”.

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