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Me aluguei para sonhar

Alugar a cabeça, o tronco e os dedos para redigir aquilo no qual você não acredita é se alugar para sonhar
Sigo não me alugando pra sonhar, mas prospectando novos sonhos
Sigo não me alugando pra sonhar, mas prospectando novos sonhos (Green Chameleon/ Unsplash)
Ricardo Soares*
Me aluguei para sonhar o sonho dos outros. E deixei de sonhar os meus. Quando você é pago para escrever as histórias e os sonhos alheios, contar fatos que não são os seus sobre vidas que não são as suas é evidente que você se alugou para sonhar o sonho alheio. E nem precisa ser ghost writer para isso. Alugar a cabeça, o tronco e os dedos para redigir aquilo no qual você não acredita é se alugar para sonhar. É perder o tempo, o viço e a esperança de um dia, enfim, trabalhar para si e não para os outros. Penso exatamente nisso quando vejo os meus amigos aqui ao redor dessa mesa impessoal, sorvendo um inhoque insosso, sem o viço que um dia tiveram. Penso nisso quando os vejo brindar com comedimento, trocar receitas de farmácia, falar de especialistas cardiovasculares. Seria engraçado se não fosse patético. Diante disso e diante deles enxergo finais de enredo melancólicos. Mas nem sei se eles também se sentem assim. Podia ser pior. Podíamos, qualquer um de nós, chegar perto de uma beleza de Marlon Brando e com o correr dos anos ver que essa beleza vai se esvaindo e então nos chamam pela beleza que um dia fomos e não pela caricatura de beleza que agora somos. Todo trágico tem uma dimensão poética embutida e todo trágico deixa de ser trágico quando o que ronda é uma tragédia maior. Como ser Marlon Brando e acordar um dia e ver diante do espelho um porco engordado na ceva?.
O que não é tão trágico é que onde eu enxergo tragédia os meus amigos, menos dramáticos, não enxergam. Enxergam circunstâncias, enxergam normalidades, enxergam que assim devia ser, pois assim escolhemos. Mas eu, diante desse vinho em temperatura inadequada, não concordo com isso. E vou além... creio que traímos miseravelmente nossos ideais de juventude e agora às vezes me sinto a compor um réquiem e não um inventário dos nossos tempos, embora tenha plena ciência de que não estou fazendo nem uma coisa nem outra. Minha quilometragem já está tão alta, já me aluguei tanto para sonhar, para delirar, para mentir que agora quero me dar ao luxo de me alugar para mim mesmo, embora tenha a plena consciência de que isso é muito difícil de fazer. Mas estou cansado, senhoras e senhores.
No entanto nos tempos da pandemia, nos tempos da geografia invertida que nada vale pois não podemos cruzar fronteiras impunemente eu tento revirar carcaças de peixes secos que foram parar na praia. Da areia não brotam sonhos, dos sonhos não faço comida. Assim é a vida. Mas não desisti de plantar, semear, seguir achando que o vale logo adiante não é só de lágrimas. Sigo não me alugando pra sonhar, mas prospectando novos sonhos.

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*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 8 livros, dirigiu 12 documentários

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