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QUALQUER SEMELHANÇA...

Em pleno trânsito, quando o semáforo abre, o condutor de um veículo não consegue dirigir. As pessoas, irritadas, começam a xingar, apertam as buzinas de seus carros, raivosos com o homem que está atrapalhando suas vidas, seus compromissos... Esse homem – o primeiro cego - é subitamente acometido por uma cegueira branca, como se fora um “mar de leite”. Ajudado por um homem, é levado para sua casa. Por trás dessa caridade, o outro se aproveita e furta o veículo do cego.
A partir daí, em face de uma sequência de contatos feita com o primeiro cego, as pessoas vão se contagiando: o ladrão do carro, a esposa do primeiro cego, o oftalmologista que o atende, uma mulher de óculos escuros, um homem com uma venda preta, um rapazinho estrábico... exceto, a esposa do médico, a única a não cegar.
Nenhum dos personagens tem nome. Nem precisaria, pois a atitude de cada um, diante da pandemia de cegueira a desafiar a Medicina, age como agiria qualquer ser humano quando em situação extrema, mostrando do que é e não é capaz.
Estabelecida a quarentena pelo governo, medida considerada um ato de solidariedade para com o restante da sociedade, muitos são levados para um local onde ficarão isolados, de modo a não contaminar mais pessoas. Ali, terão de lutar pela sobrevivência, convivendo com a sujeira, a falta de comida, de água, de higiene, a violência e a exploração sexual das mulheres, a morte, o desespero...
Parte da imprensa divulgava de forma sensacionalista sobre a cegueira súbita. O governo teve de improvisar e montar acampamentos, requisitar lugares para instalar os cegos. Contudo, percebendo que não conseguiria conter a epidemia apenas confinando as pessoas e, receando os custos políticos, o governo passou a defender que cada família cuidasse de seus cegos.
Mas todos cegaram. Todos. Menos a mulher do médico, que passou a ser os olhos dos cegos que se uniram e, por isso mesmo, conseguiram sobreviver ao caos. “(...) vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o”, disse ela.
Os cegos recuperaram a visão, de repente, e o médico diz: “queres que te diga o que penso? Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.
A esperança ressurge e, com ela, a oportunidade de refazer um mundo melhor.
Ensaio sobre a cegueira. Livro de José Saramago.

Qualquer semelhança com o mundo atual será mera coincidência.
Grecianny Carvalho Cordeiro
Promotora de Justiça

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