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Velho e inútil

Vivemos em uma sociedade predadora que só cultiva o jovem, o belo, o 'momentoso'
Envelhecer é acumular lembranças
Envelhecer é acumular lembranças (Unsplash/ Sam Wheeler)
Ricardo Soares*
O texto da mulher surgiu assim de supetão na rede social, navegando a esmo. O nome da autora de sorriso simpático é Elaine Tavares e pouco sei além disso e do fato de que ela tem mais de 40 amigos em comum comigo e deve viver no sul do Brasil. De um jeito belo e contundente ela redigiu uma maravilha sobre a velhice que ao mesmo tempo era uma forma de homenagear seu velho pai de 88 anos. O texto tem um mês que foi escrito e, com justiça, parece que viralizou. Chama-se Ser velho e inútil. É fácil de localizar, portanto não vou empanar seu brilho. Procurem direto essa fonte que é melhor do que qualquer coisa que eu possa escrever aqui a respeito.
Já deitado na noite do dia dos namorados – sem namorada – trombei com o texto e antes que pudesse começar a chorar compartilhei com amigos da tal rede social que mais traz coisa ruim do que boa. No entanto, dessa vez, a pesca foi das mais proveitosas e no dia seguinte percebi pelos comentários e curtidas que o texto além de bem escrito atinge a todos nós muito além da sombra dos nossos medos. Afinal, quem não teme  ficar velho e inútil ou assim ser julgado por uma sociedade predadora que só cultiva o jovem, o belo, o “momentoso”?
O tema nos atinge, pelo menos a mim, porque não há um dia em que eu não reflita sobre o assunto quando me certifico que – entrado no portal da envelhescência – percebo, a contragosto, que dias melhores não virão por mais que eu queira ser otimista. Até me martirizo em relação a isso quando percebo que profissionalmente vivo das sombras do que fui e não do que sou atualmente.
Noto, a contragosto, que a experiência é pouco valorizada em qualquer atividade profissional, principalmente nesse nosso país de valores invertidos. E aí dou de cara com a cena que Elaine descreve em seu texto quando diz que “estava lavando roupa e o tanque fica bem num ângulo que dá pra ver o quarto do pai. Vi que ele conversava muito animado com uma fotografia que achou numa revista e que colocou na mesinha de suporte. Ela fica ali como num altar. É uma foto de um grupo de pessoas, num tempo passado, creio que deve ser lá pelos anos 1940. Não sei quem são, e nem ele, presumo. Mas, de qualquer forma ela o distrai e ele conversa amiúde com aquele povo”.
Pois o pai dela, como muitos de nós, conversa , amiúde, com aquele povo do passado. Muitos evidentemente já mortos. Eu mesmo já me vi proseando com meu pai, minha mãe e até com um amor que morreu embora a moça siga viva. Como o pai  da Elaine as vezes cochilo ao redor dessas prosas, me assusto, ando em volta do assunto e invento fainas para me distrair. Mas de nada adianta. Envelhecer é acumular lembranças e ficar livre delas como recomendam arautos da autoajuda é uma maneira nociva de nos anularmos. Quer dizer que devo me render só ao culto do presente?
Não tenho nem competência para escrever tão lindamente sobre o assunto como a Elaine nem o conhecimento da causa que acumulou Tania Celidonio, jornalista amiga, já sexagenária também, que fez um singelo livro sobre sexualidade na terceira idade e que deveria ser melhor divulgado. No entanto me incomodo bastante com o tema não apenas quando sinto algumas juntas que não doíam começarem a doer. E falo das juntas da alma também.
Passo alguns dias assim como o pai da Elaine, muito embora não tenha os 88 dele. Acordo, cochilo, como mexerica, fuço as estantes, acarinho os cachorros, fico andando em volta da casa, vou até o portão e levo os sacos de lixo para a lixeira, bagunço a cozinha com minha culinária ogra, ouço rádio e coloco CDs – coisa mais antiga! – para ouvir o que toca a minha sensibilidade e consciência. É uma vida não produtiva, que alguns chamariam inútil como a vida do pai da Elaine? Creio que não porque se escrevo estou vivo. E isso também faço todo dia. Mas, pela pandemia ou não, também para o mundo do trabalho, do capital, me tornou um inútil precocemente apesar de um ou outro “serviço” como batucar essas linhas para vocês, leitores queridos.  E como a Elaine me desgoverno quando penso que muitos governantes não se importam com a morte dos velhos agora na pandemia, muito embora alguns desses governantes também já sejam velhos.
Quando eu vejo o pai da Elaine, aos 88 anos, olhar para os seus guardados, lembro do meu próprio pai que olhava vagamente para a lagoa da Pampulha ainda aos 67 anos e totalmente confuso pelo Alzheimer precoce e sabia que sua inutilidade era um fato. Ele também tinha sido arrimo da família e naquele instante também já não fazia mais nada por ninguém. Faziam por ele. Talvez por isso a única coisa que lhe restasse era me pedir um cigarro que ele já não deveria e nem podia fumar. E eu sem culpa lhe dava. Afinal, o que lhe restava? Confundir seu filho com seu pai, não reconhecer os netos, imaginar que vivia em nesgas da sua infância?
Meu pai, como o pai da Elaine, começou a trabalhar cedo e sua vida era o trabalho e o zelo com a família. Dramático ou não quando foi sepultado tive a consciência que parte de mim ia junto. Porque já intuía que o mundo, o Brasil, aplaude quem chega a um ilusório pódio onde os louros são um nada. Porque as pessoas desconhecem que a nossa pátria são os nossos sapatos que nos levam a destinos de reflexões que evitamos. Assim sendo trago o cigarro que dava para o meu pai mesmo que eu já não fume. E brindo ao pai da Elaine que alheio ao que se passa em volta fez sua filha se inspirar e derramar beleza sobre a gente nesses obscuros tempos de pandemia.
*Ricardo Soares é diretor de tv, escritor, roteirista e jornalista. Publicou 9 livros, dirigiu 12 documentários. Seu novo livro 'Devo a eles um romance' encontra-se em pré-venda no site da editora Penalux. (www.editorapenalux.com.br)

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