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Cores da quarentena

Tamires Ferreira, artista da tinta e da palavra, conversou comigo sobre os caminhos que a vida tem tomado em dias de incertezas e distanciamento social. Do encontro de tons, fez-se preenchimento


Essa história poderia ser resumida no seguinte: a conversa que não começou nem terminou. Veja, leitora/leitor: a bem da verdade, as trocas que mantenho com Tamires Ferreira antecedem (e muito) o mergulho que vivemos juntas nesta quinta-feira de quarentena, a respeito do qual me debruçarei nestas linhas. É que, bem antes de convidá-la a trocar palavras e cores comigo, venho dialogando sobre questões existenciais com todo transbordar que essa artista, assistente social de formação, compartilha no Instagram, janela virtual que promoveu nossa conexão.
Curiosamente, continua sendo entre-telas esse partilhar artístico de duas mulheres que, definitivamente, são da presença. Foi por meio do Google Meet que a contatei para o tal diálogo que chamo de atemporal. E o fiz com um leve pesar, acompanhado de uma boa dose de resignação por saber ser impossível qualquer outro modo. “É que as plataformas virtuais são tão limitadas...”, pensei. Não contava com o fato de que Tamy ressignifica o limite.
Com a grave e característica voz, ela narrou como os movimentos deste tempo atípico têm influenciado o interior dela. Na condição de apaixonada pela mistura de água com tinta e apreciadora antiga da arte de Tamires, eu havia pedido a ela que trouxesse ao encontro virtual o material necessário para aquarelar, certificando-me de também ter à mão os elementos fundamentais à prática. 
Tão logo começou a conversa, minha porção repórter falou mais alto e comecei a anotar. Tomei nota da relação com a quietude que precede à pandemia. Os anos após a formatura na Universidade, que aconteceu em 2018, foram voltados à reconexão consigo. Marquei a relação com a casa, esse lugar sagrado “em que não dá pra fugir dos nossos fantasmas, do que nos assombra”. A diferença entre solidão e solitude, conceito tão bem firmado na vida de Tamy, também foi expressada nos primeiros momentos do encontro: “Para mim, tem muita diferença. A solitude está muito mais ligada a essa conexão com minha essência, com quem eu sou, com essas profundezas. A solidão talvez seja esse estigma que a gente tem de que ‘é muito ruim estar sozinho, é muito ruim estar comigo’”.
Legenda: Logo depois da nossa conversa, Tamy compartilhou essa obra no Instagram com a legenda "Que cores você escolheria para aquarelar seu autorretrato?"
Foto: Tamires Ferreira
Imersa, segui anotando. Até o ponto em que Tamires fala sobre repensar a produção e o fazer. Faz sentido que tenha sido nesse exato momento a “virada de chave”, o instante em que percebi que a caneta e o papel não contemplavam, sozinhos, as nuances daquele diálogo.
O bloquinho de entrevistas foi deixado de lado, a caneta Unipin de ponta 4.0 permaneceu. Vieram ao jogo a folha de alta gramatura e as muitas cores que estavam por ali, me rodeando, na mesa da sala de casa. Adicionados pincel e água, a subjetiva equação parecia completa. Passei a traduzir nossa prosa em cor, coisa que a artista fazia desde o início da conversa.
Revelações da aquarela
Entre uma pincelada e outra, a aquarelista contou que, quando a quarentena começou, vivia a experiência de lecionar a disciplina de Artes, numa escola do bairro Antônio Bezerra, a mesma em que estudou. De produção, nada vinha sendo feito. Um bloqueio criativo havia pausado as vendas e as aventuras pessoais vividas por ela em seu ateliê.
Foi nessa toada que Tamires Ferreira viveu também os primeiros meses da quarentena. “Eu me dei férias. Não pegava em nada concreto, não pensava ‘isso aqui vou fazer para vender ou postar’. Foi um período de total recolhimento”, conta, explicando que se afastou das redes sociais e começou a repensar o fazer, outrora tão apressado. Das leituras feitas no período, nasceram reflexões sobre produtividade, cansaço e profundezas do espírito. Veio a percepção de a que a autopunição e a cobrança não eram o caminho. “O que eu posso me dar enquanto autocuidado? Descanso”.
A essa altura do papo, a primeira fase da quarentena da aquarelista já tinha se tornado cor no meu papel. Num azul aquoso, um tanto esverdeado, a palavra “pausa”. As leituras, reflexões e entendimentos sobre a solitude, por sua vez, foram representados por camadas de vermelho e laranja que culminaram numa reviravolta solar. 
Legenda: E estas são minhas anotações mais diferentes durante meu tempo de prática jornalística. Uma linha do tempo aquarelada da vivência com a artista
Foto: Ana Beatriz Farias
Isso porque, quando junho chegou, trouxe consigo a reinvenção da artista. Em amarelo vibrante, um sentimento de urgência estava em tudo. Um problema de saúde vivido pelo pai catalisou o movimento de mudança. “O que eu posso ser hoje, sabendo que a vida é imediata, é urgente?”, foi um dos questionamentos propulsores de novos voos. “Essa sensação de viver o aqui e agora me trouxe muita conexão com minha arte”. Com o desligamento social e a partir da necessidade de reconectar-se com os seres, dilatada pela leitura do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak, a criatividade emergiu.
Outros tons
O renascimento do que, na verdade, era inédito veio colorido de dualidade. Os verdes, antes pouco utilizados na arte de Tamires, surgiram sutis, leves. Ao passo em que as cores fortes, terrosas e escuras também passaram a habitar o imaginário e as obras dela, que tem “a criação como compromisso com a vida”.
Conversávamos sobre isso, quando ela mostrou uma paleta, toda de tons escuros, que vem utilizando no momento. “Ela reflete como eu me relaciono com minhas sombras, como me relaciono com essa matéria escura, como gosto de chamar”, comentou, unindo a descoberta de si à perspectiva astronômica universal.
Foi neste ponto do nosso encontro virtual que Tamy levantou a folha que vinha colorindo em tempo real. Círculos preenchidos de tinta comunicavam que, mesmo sem falar diretamente em tons, tínhamos escolhido as mesmas cores, na mesma ordem, para falar da partilha em curso. Aconteceu, então, que azul, vermelho, amarelo, verde e marrom traduziram-se em conexão. Pelo menos, foi assim que definimos, de modo ligeiro e exclamativo, o indizível.
As formas também se transmutaram em discurso. Geralmente pequenas, as esferas de cor, que são marca registrada de Tamy, ocuparam rapidamente uma folha completa. “Hoje eu estou imensa”, ela disse. E eu não tinha como discordar.
Legenda: Esta foi a primeira paleta criada pela Tamy durante nossa troca de ideias, a que nos impressionou pela semelhança com o que eu criava no momento
Foto: Tamires Ferreira
Esse agigantamento interior refletido no papel foi se expandindo mais e mais no fluir de uma conversa boa. Falamos do impossível como meta tantas vezes imposta por si, da necessidade que se tem de pragmatizar o subjetivo e da intensidade que a vida ganha ao cruzar com a moça de 28 anos que partilhava desse refletir comigo.
“Ontem, eu postei um texto super tenso e a galera ficou preocupada. Eu disse ‘vocês têm que entender que tudo pra mim é mais intenso; não quer dizer que eu estou assim, dissociada da vida. Se o vermelho é de uma cor, para mim ele vai ser muito mais forte’”. E essa força reveste tudo o que a envolve. Quando indica a leitura atual, “O espírito da intimidade”, de Sobonfu Somé, livro que traz uma perspectiva não ocidental das relações -, ela me conta que começou a ler no dia anterior e já se sente transformada. 
Sede de compartilhar
Toda essa ebulição, como se pode imaginar, transborda. Tamires está, constantemente, a tecer tramas que a conectem com a arte que vive no outro. Antes do isolamento social, promovia oficinas de aquarelas poéticas na casa-ateliê. Recentemente, pela primeira vez, ela o fez onde quase todas as trocas têm se realizado: no mundo virtual.
Na sua proposta de ensino, em dado momento, as participantes, introduzidas no universo aquarelado pela artista, elegem sentimentos que surgiram ao longo do período pandêmico. Com isso feito, colorem um por um, dando à luz um resultado surpreendente, da atividade intitulada por Tamy “Cores da Quarentena”. “As cores que elas fizeram foram fantásticas! Coisas muito parecidas, expressas de formas muito diferentes. É incrível, porque a gente usou o mesmo nome para algumas coisas, mas com cores completamente diferentes. A interpretação de cada uma sobre o próprio sentimento é incrível”.
Legenda: A palavra "sede" veio à nossa conversa para traduzir o anseio pela conexão. Tamy também falou em "fome espiritual" para definir a necessidade do transcendental
Foto: Tamires Ferreira
As diferenças entre o exercício de lecionar pessoalmente e fazer isso entre-telas são nítidas. As dificuldades tecnológicas, a impossibilidade de explanar de perto sobre a técnica. “Coisas que só a presença é capaz de proporcionar, do ver ao vivo, do olhar”.  Ainda assim, foi possível sentir que “a coisa vivida, do momento, é muito mais simples do que a complexidade que a gente cria na cabeça. Mesmo dentro do virtual, eu consegui chegar perto delas. Era como se eu estivesse do lado, a sensação era essa, sabe?”.
Ah, como sei, Tamires Ferreira! Eu sei demais. O compartilhar de experiências que vivemos, virtualmente, como falei a ti e a quem nos lê, neste texto, elevou a presença ao nível do transcendental, fazendo o estar físico parecer adorno dispensável. A descoberta em forma de conversa continua a acontecer aqui dentro. E não há previsão de parar de acontecer.
SERVIÇO
O Ateliê da Tamy está com inscrições abertas para a Oficina de Aquarelas Poéticas Online. Para mais informações, basta entrar em contato pela página da artista no Instagram .
Diário do Nordeste

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