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Livro “O Mundo de Flora”, de Angela Gutiérrez, completa 30 anos

Publicada, pela primeira vez, em 30 de agosto de 1990, obra assinada pela presidente da Academia Cearense de Letras segue encantando gerações

Logo no primeiro capítulo, quando uma das protagonistas de “O Mundo de Flora” se pergunta sobre o alcance do texto de sua autoria – “Para quem escrevo? Para mim mesma? Alguém lerá estas páginas?” – decerto não imaginava o quanto aquelas palavras ressoariam, com singular força, por entre uma multidão de leitores Ceará e mundo afora. 
Fato é que nem a própria autora, Angela Gutiérrez, planejava trazer o romance à tona. “Não pensava em publicá-lo; porém, depois que, alertada por meu sobrinho Augusto César sobre a qualidade e originalidade da obra – pois me ouvira ler páginas do texto escrito à mão – e dando ouvido a seu conselho de que deveria mostrá-lo a alguns grandes escritores, professores da Universidade Federal do Ceará (UFC), tive a suprema coragem de mandar datilografá-lo e copiá-lo em alguns exemplares”.
Legenda: Capa da primeira edição de "O Mundo de Flora", publicada em 1990
Foto: Divulgação
O manuscrito original foi parar nas mãos de nomes como o poeta e ensaísta Artur Eduardo Benevides (1923-2014), o pesquisador Sânzio de Azevedo, o contista Moreira Campos (1914-1944) e o ficcionista Horácio Dídimo (1935-2018), além do próprio marido da escritora, o médico Oswaldo Gutiérrez.
“A generosa e entusiasmada receptividade que obtive após a leitura deram-me confiança para mostrá-lo a meu pai e mais sábio leitor que já conheci, Luciano Cavalcante Mota, e minha mãe, Ângela Laís Pompeu. Com a emocionada aprovação do casal, comecei a acreditar que meu romance era uma obra que não me causaria vergonha ao ser publicada”. 
E assim, em 30 agosto de 1990, ocorreu o lançamento no Ideal Clube, com apresentação de Moreira Campos e fala do ex-reitor da UFC, Antônio Martins Filho, além de discurso da própria autora, jovem professora universitária. 
Três décadas após esse momento, o Verso conversa com Angela para saber por que a obra segue encantando gerações. E, claro, de que forma o aniversário de publicação do romance de estreia da presidente da Academia Cearense de Letras (ACL), vencedor do Prêmio Estado do Ceará de Literatura, será celebrado. 

Desde junho, Angela tem sido convidada para dar depoimentos virtuais sobre a efeméride. Brevemente, ainda participará de momentos promovidos pela Universidade Estadual do Ceará - Campus de Limoeiro do Norte e pelo Instituto Federal do Ceará - Campus de Tabuleiro do Norte
Legenda: Capa da segunda edição do romance, publicado em 2007; à época, foi uma das leituras obrigatórias para o vestibular da Universidade Federal do Ceará
Foto: Divulgação
A ideia para marcar a data era a publicação da coletânea “Viagem ao mundo de Flora”, organizada por Cleudene Aragão, Eleuda de Carvalho, Maria Inês Pinheiro Cardoso e Vania Vasconcelos, com prefácio da professora Vera Lúcia Albuquerque de Moraes. O material reunirá artigos publicados em jornais, revistas e livros sobre o romance, e outros ainda inéditos; discurso da autora durante o lançamento da obra, além de iconografia e cartas sobre o livro. 
“Infelizmente, com os problemas trazidos pela pandemia, e por culpa de minha vida ter muito o que fazer, não pude entregar a parte que se referia a meus textos sobre o romance aniversariante e a coletânea ainda precisa ser complementada”, explica Angela. 

Polifonias 

Oportuno enlace entre ficção e memória, “O Mundo de Flora” – ora narrado em primeira, ora em terceira pessoa – transita entre casarões antigos, costumes de outras épocas e confissões pessoais sob a perspectiva de diferentes personagens. O objetivo é contar várias histórias, unidas por detalhes fragmentados na narrativa. Esse aspecto, inclusive, é o que faz o romance ser reverenciado até hoje, dadas as inúmeras intertextualidades e polifonias. Ganhou ainda mais leitores quando entrou na lista de obras obrigatórias para o vestibular da UFC, em 2007. 
“Não foi um romance planejado, roteirizado, fincado em pesquisas antes de determinado momento. Numa noite epifânica, senti tão forte premência de narrar o mundo ficcional que me estava ocupando a mente que resolvi levantar-me. Ali, escrevi grande parte do material”, relata Angela. “Quando lembro disso, sorrio pensando que, no meu livro de estreia, agi como alguns jovens poetas românticos que se sentiam iluminados antes de escreverem seus poemas, o que acontecia, quase sempre, à noite”. 
Portanto, o rascunho não foi desenvolvido com disciplina profissional, mas com impulsos de paixão. Por sua vez, durante a montagem dos fragmentos que compõem a obra, houve o trabalho de certo distanciamento da narrativa, alternando os trechos de forma a temperar o trágico com o cômico ou gracioso. 
“As histórias contadas por personagens com os acontecimentos da trama são vistas pelo olhar de um narrador que se confunde com a memória da família e da cidade, utilizando-se de outros artifícios narrativos, como cartas, diálogos e brincadeiras infantis verbais. E o fio condutor narrativo escrito por Flora, em primeira pessoa”, explica a autora. 
Legenda: Além de "O Mundo de Flora", seu romance mais celebrado, Angela também escreveu várias outras obras, no campo da ficção e da não-ficção
Foto: Helene Santos
Fortaleza, então, é vastamente homenageada, especialmente porque retratada nos primórdios, descrita em hábitos passados que a narrativa faz questão de registrar – brincadeiras, tratamentos escolares, perspectivas sobre a cidade. Além disso, traz importante reflexão sobre a morte, temática que circunda toda a atmosfera do romance. 
Tais atributos fazem com que a escritora dimensione o porquê de “O mundo de Flora” continuar tão querido pelo público. Segundo ela, já na época do lançamento, foi possível perceber que a obra agradava, por diferentes motivos, a leitores e leitoras de distintas idades.
Enquanto os mais jovens se afeiçoavam às travessuras de Flor e às histórias contadas pelo avô e pela mãe da menina, os de maior idade se identificavam com a parte narrativa de costumes e modos de vida de épocas passadas, tendo em vista que a linha do tempo do romance abrange um período muito anterior ao do nascimento de Flora. Retorna à vida de seu trisavô, desde a primeira metade do século XIX, e continua até os anos 80 do século XX.
“Muitas pessoas me relatavam o prazer de enfrentar o desafio da montagem da trama, por exemplo. Acredito que por esse modo de ser desafiante da obra, e outros detalhes assinalados, ‘O Mundo de Flora’ continua a interessar o leitor do século XXI. Apesar dos grandes avanços tecnológicos da época atual, continuamos a lidar com problemas não resolvidos ou retornados”, situa Angela. 
Um caráter de permanência que acompanha outras empreitadas da autora. No campo da ficção, escreveu ainda “Canção da menina” (1997), “Avis Rara” (2011) e “O silêncio da penteadeira” (2016), entre outras obras, todas com positivo retorno de crítica e público, e deve seguir com os projetos literários adiante. Angela tem livros iniciados, embora interrompidos pela movimentada agenda cultural da literata. “Pretendo dedicar-me futuramente a dar-lhes continuidade”.

Academia

Até o fim deste ano, porém, Angela cumpre outro desafio importante em sua trajetória, a presidência da Academia Cearense de Letras. Devido à pandemia do novo coronavírus, as atividades presenciais da casa ainda estão suspensas, mas momentos virtuais são realizados em continuidade às celebrações dos 126 anos da ACL. 
Legenda: Angela Gutiérrez afirma que, quando entregar a presidência da Academia Cearense de Letras no fim deste ano, continuará com o mesmo amor e dedicação à instituição
Foto: Helene Santos
Sobre sua gestão, Angela reflete: “Assumi com honra a presidência da Academia e, apesar das dificuldades financeiras, foi possível resolver graves problemas de infraestrutura, o que impediu maior amplitude do programa cultural. Quando entregar a presidência, continuarei com o mesmo amor e dedicação à instituição e estarei sempre pronta a prestar-lhe meu apoio”. Informa ainda que deve otimizar neste ano a realização de um projeto, aprovado pela Secretaria da Cultura do Ceará em 2019, relativo a publicações e à infraestrutura do Palácio da Luz. 
Assim, entre tantos passos dados no terreno da literatura, com o foco primordial de torná-la cada vez mais acessível, forte e atuante, Angela Gutiérrez parece sempre retornar às palavras que imortalizaram “O Mundo de Flora”: aquelas que residem no mais profundo das vivências e costumes para bradar sabedoria, conhecimento e afetos. 

>> Confira algumas citações sobre “O Mundo de Flora”
- “Li, encantado, O Mundo de Flora, romance de qualidades excepcionais. Não sei o que mais admirar: se a técnica segura e original da construção literária; a reconstituição do passado de um século, acompanhando várias gerações de uma família que nós, da terra, podemos identificar como uma das mais notáveis na vida intelectual e política do Ceará; a descrição da vida na pequena Fortaleza que eu ainda conheci, tão diferente da megalópole de hoje; a linguagem fluente, com os modismos da época. Só uma cultura geral acima do comum poderia suprir, como supriu, a pouca idade da autora, ainda tão jovem.”
Carta de José Bonifácio Câmara. Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1990
- Cada episódio, cada caso, cada narrativa, nos conduz ao mundo miraculoso da criação. Nos leva a pensamentear como diria Mário de Andrade. Porque, com efeito, há substancial diferença entre pensar – que é sério, carrancudo, solene – e pensamentear que é vago, fluido, inconseqüente. Feliz do artista, principalmente do romancista, que leva quem o lê ao milagre de criar. Não seremos nós os eternos vacilantes entre a realidade e o sonho?”
Carta de João Clímaco Bezerra. Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1990
“Poesia, lirismo, conto, narrativa autobiográfica, sátira social e política, mundo épico e picaresco são fios genealógicos que se entretecem artisticamente, num texto literário vivo, aparentemente despojado, mas enriquecido por uma multiplicidade de registos e recursos estilísticos, aliando o popular e o erudito, o regional, o nacional e o universal. É com o ingrediente da simplicidade aparente que se constrói uma obra-prima.”
Trecho de artigo para a coletânea “Viagem ao mundo de Flora”, ainda não publicada, escrito pelo Prof. Dr. António Manuel de Andrade Moniz, da Universidade Nova de Lisboa
“Este ano ficará marcando, para a literatura cearense, uma das estréias mais significativas: Angela Gutiérrez aparece-nos com um romance que nasce sem a maioria dos traços encontrados geralmente nos livros dos que se iniciam. Na verdade, O Mundo de Flora nos revela uma escritora em pleno domínio de seu ofício, sabendo trabalhar a matéria ficcional com segurança e arte.” 
Trecho de artigo de Sânzio de Azevedo, Prof. Dr. pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, crítico e historiador literário, para as orelhas da primeira edição do livro
“Ler O Mundo de Flora é adentrar um outro mundo, misto de realidade e ficção, alegrias e tristezas, vidas e mortes, sonhos e desesperanças, encontros e desencontros, de tudo um pouco, de que a mão de Angela se plenifica para recriá-los e nos presentear, escoimado do lugar-comum. Aí, então, tudo se renova, tudo renasce com as cores da infância, vivas, naturais, como num conto de fadas.”
Trecho de artigo de Giselda Medeiros, acadêmica da Academia Cearense de Letras, para a coletânea “Viagem ao mundo de Flora” e publicado na Revista da ACL
Diário do Nordeste

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