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Cristãos e cristãs, comam (a) história!

 Precisamos encontrar os desígnios salvíficos de Deus Deus na história


Comer do livro diz respeito à vocação profética

Comer do livro diz respeito à vocação profética (Unsplash/Ryan Riggins)

Felipe Magalhães Francisco*

"Eu fui até o anjo e pedi que me entregasse o livrinho. Ele me falou: 'Pega e devora. Será amargo no estômago, mas na tua boca será doce como mel'. Peguei da mão do anjo o livrinho e o devorei [...]. Então me foi dito: 'Deves profetizar ainda contra muitos povos e nações, línguas e reis'" (Ap 10,9-11). A ordem celeste dada a João, o vidente do Apocalipse, é bastante inspiradora para nos ajudar a pensar a atuação cristã no mundo, no momento atual em que nos encontramos. Como em todo o livro do Apocalipse, o comer o livro é um símbolo muito importante, pois está ligado à missão profética, tal como nos inspira o Livro do Profeta Ezequiel (cf. 2,8).

Antes, porém, de nos dedicarmos a refletir sobre o gesto simbólico de comer o livro, faz-se necessário que nos atenhamos ao símbolo mesmo que representa o livro no Apocalipse. O capítulo 5 introduz o tema do livro: o vidente vê, na mão direita de quem estava sentado no trono – o próprio Deus – um livro, que é descrito como que sendo um rolo, escrito por dentro e por fora. Esse livro estava lacrado com sete selos. Sete, aqui, tem um valor qualitativo – portanto, simbólico: esse livro estava plenamente lacrado, inacessível, o que leva um anjo, de voz forte, a proclamar uma importante questão sobre quem é digno de romper os sete selos. A narrativa diz que João, o vidente, chorava, porque ninguém havia sido mostrado digno de romper os selos. Um ancião, porém, disse a João: "Não chores! Vê, o leão da tribo de Judá, o rebento de Davi saiu vencedor. Ele pode romper os selos e abrir o livro" (Ap 5,5).

Certamente, o ancião se referia a Jesus, o que em seguida fica claro, quando se fala do Cordeiro. A imagem do Cordeiro traz um paradoxo interessante: esse personagem é apresentado estando de pé, "como que imolado" (5,6). Os cristãos e cristãs são chamados, tão logo, a reconhecer: o Cordeiro é o crucificado-ressuscitado. Ele é, pois, o único digno de romper os lacres do livro, afinal ele é o vitorioso. Além disso, e sobretudo, ele é o "Alfa e o Ômega" (Ap 1,8), isto é, aquele que é o princípio e o fim, portanto o pleno conhecedor da história. Aqui, pois, desvela-se para nós o significado do símbolo do livro no Apocalipse: significa a História. Não é sem motivos que, a cada selo rompido, revelações e suas respectivas interpretações (apocalipse) são feitas.

Abrir o livro, na literatura apocalíptica, significa, pois, revelar os segredos da história, os mistérios da origem e do destino do mundo. O que mais especificamente faz a literatura apocalíptica é uma teologia da história, pois é na história que precisamos encontrar os desígnios salvíficos de Deus, bem como apontar toda a ação do anti-Deus, que atua para impedir a salvação. Quando o autor do Apocalipse de João mostra que o Cordeiro é digno de romper os selos, ele ajuda os cristãos e cristãs a compreenderem que, a partir de sua fé, o mistério da vida do crucificado-ressuscitado é o que ilumina a verdadeira leitura e o entendimento da história.

Há muito o que podemos aprender com tudo isso. Um elemento, nisso tudo, merece destaque: quando cristãos e cristãs perdem sua capacidade de ler, criticamente à luz da fé, a história, sempre recaem nas armadilhas feitas pelo anti-Deus, isto é, pelo maléfico sedutor. Ao olharmos para a história do cristianismo no mundo, perceberemos que, muitas vezes, cristãos e cristãs se aliaram ao poder do anti-Deus, pensando que lutavam contra o mal. Saber ler a história é critério fundamental para o comprometimento verdadeiro com o Evangelho do Reino de Deus.

Em nossa atualidade brasileira, temos visto como cristãos e cristãs se aliaram ao perverso, em nome daquilo que julgam como que sendo bons valores. Na verdade, o grito perverso contra a diferença, contra a pluralidade, contra o diálogo é sinal de que deixamos de saber ler a história. Se não sabemos ler a história, não sabemos atuar verdadeiramente como profetas. A ordem dada a João, para que comesse do livro, é uma exortação forte, que precisa ecoar entre os cristãos e cristãs de hoje: devemos saber ler a história; devemos fazer com que essa história entranhe em nós. É preciso que não nos atenhamos ao doce que fica na boca: é preciso ir além, deixando que o amargo desse livro alcance nossas entranhas.

Como dissemos, comer do livro diz respeito à vocação profética. E, no caso dos cristãos e cristãs, batizados e, por isso mesmo, comprometidos com a missão do próprio Cristo, o Cordeiro imolado-vitorioso, precisamos assumir uma postura profética no mundo. E isso só bem o faremos, se nos permitirmos redescobrir a importância e a prática de ler a história. O livro já nos foi aberto, isto é, revelado: tal como João, que recebeu o livro aberto, também nós precisamos ter o Evangelho como luz que nos ajuda a compreender a história, para fazermos a opção pelo Deus da Vida, o Senhor absoluto, e não nos deixarmos seduzir por falsos messias que nos arrastam para a morte e são empecilho para a instauração do mundo novo que há de vir. Comamos, pois, a história!

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com

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