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Na feira de Lisboa, o livro vence o vírus

 Em sua coluna, Julio Silveira fala sobre sua experiência na Feira do Livro de Lisboa que aconteceu mesmo com a pandemia do novo coronavírus

© Booker
© Booker

Em abril publiquei aqui no PN um relato de como Portugal lidava com o Covid na tentativa de animar (ou melhor, consolar) o povo do livro no Brasil. Era mais ou menos o que tentavam fazer as crianças, que desenhavam um arco-íris com a frase “vamos todos ficar bem” e punham o desenho à janela (um desses ilustrava o artigo). Porém, para ser honesto, nada naqueles dias me garantia que ficaríamos bem: livrarias fechadas (à força da lei ou por falta de dinheiro), vendas abissais, prognósticos catastróficos. O único alento, a tênue luz no fim do túnel, era a confirmação de que a Feira do Livro de Lisboa, que fora cancelada em maio, voltaria a acontecer em agosto, logo antes da Feira de Frankfurt.

Frankfurt, enfim, acabou não acontecendo, mas a Feira de Lisboa foi muito bem, obrigado! Fiz lá minha reestreia como expositor (15 anos depois da minha última feira com a Casa da Palavra!), no “pavilhão” (estande) da Motor Editorial. Não estava lá muito confiante e estava menos ainda seguro. Iria encarar um público novo e a ele oferecer produtos novos (livros de sete editoras que aportavam em terras lusas, ainda por cima impressos “em brasileiro”). Contudo, pior do que não saber se o público aceitaria os livros… era não saber se tal público aceitaria vir à feira!… (Depois de uma aparente retração da epidemia, o número de novos infectados diários dobrava a cada dia, às vésperas da abertura, e já se temia um novo cancelamento).

…mas enfim o público veio. Nos primeiros dias até estourou a lotação máxima (3.300 visitantes). Parecia mesmo que as pessoas estavam compensando os frios dias de confinamento com horas ensolaradas num espaço aberto, entre livros. “Nós não nos rendemos a uma pandemia. […] Não há economia que vingue sem cultura: tecnocratas acham o contrário, mas estão enganados.” disse na abertura o presidente (e antigo-editor) Marcelo Rebelo de Sousa que, como é de sua tradição, voltou depois à feira para comprar muitos títulos (infelizmente nenhum do nosso estande). Precauções não faltaram: apesar do evento acontecer em um parque sem muros, foram erguidas entrada e saída únicas, para evitar excesso de gente (ou “enchentes” como se diz aqui). Algumas pessoas desistiram de ficar na fila, outras voltaram em outra hora (nos finais de semana o evento vai até a meia-noite). Álcool em gel por todo lado e máscaras no rosto o tempo todo (os guardas pediam que os poucos recalcitrantes as vestissem, “se faz favor”). Algumas editoras chegaram a oferecer livros plastificados para manipulação, desinfetados a cada folheada.

Fiquei com a impressão de que não foi o vírus o grande espanta-público. Após uma primeira semana de multidões, a segunda semana foi esvaziada pelo sol forte, com o público esperando a noite para vir dar uma espreitada nos livros. De qualquer modo, passada uma semana do encerramento, estima-se que o público foi só uns 40% menor do que o da última edição, uma conta a se comemorar, dentro das circunstâncias. Mais festejado foi constatar que o faturamento foi muito próximo ao de 2019, o melhor dos 90 anos em que a feira aconteceu. Não acostumados a celebrar, os editores e livreiros foram logo ressalvando que, por melhores que tenham sido as vendas, não há como salvar a queda de 30% no primeiro semestre. Se, por um lado, os organizadores anunciaram orgulhosos que a feira deste ano teve um recorde de “310 pavilhões, 117 participantes e representação de 638 marcas editoriais”, por outro uma editora tradicional como a Cotovia disse que foi sua última participação: vai fechar as portas no fim do ano.

Quanto a nós, na Motor Editorial, que estreávamos e não tínhamos nem base de comparação nem expectativa, a Feira foi bem mais que uma grande experiência. Conhecemos os leitores portugueses (e brasileiros e angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e guineenses) e eles conheceram nossos livros. Deu “match”. Muitos queriam descobrir a “nova” literatura brasileira que, aparentemente, parou em Rubem Fonseca. Outros se encantaram com os títulos de temáticas afro-brasileiras, políticas e de sexualidade — do catálogo das editoras PallasHedraMórulaN-1KalinkaCircuito e Ímã Editorial — assuntos que parecem estar em falta nas prateleiras e estantes portuguesas, um vazio que a Motor já começa a preencher.

Criada para franquear o mercado português (e, em breve, o angolano) às editoras brasileiras, a Motor Editorial começou, a partir da Feira, abrir os canais. Os primeiros títulos brasileiros, impressos na Europa, estão a caminho das livrarias e já podem ser comprados em marketplaces como a Fnac e também na nossa loja.

Pode-se dizer que o clima hoje é de entusiasmo, muito diferente da atmosfera macambúzia que descrevi na crônica/alento de abril. Ainda não dá para garantir que “vamos todos ficar bem”, já que o vírus continua. Mas vê-se que vamos chegar lá, pela força do livro.

© Pedro Fiuza / Xinhua
© Pedro Fiuza / Xinhua

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, que investiga a publicação digital e transmídia. Dirige o projeto “NossaLíngua.Doc” que documenta e estimula as conversas mundiais em português, em mídia social, livros e filme. É promotor de festivais de literatura e atual curador do LER, Salão Carioca do Livro.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.


Via PUBLISHNEWS

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