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O otimismo há de voltar

Anotações do avô, já não existente, despertaram algo que estava adormecido
Ricardo Soares
Ricardo Soares
Minha tia, a única que restou viva, me deu um presente tardio. Chegou aqui em casa o baú antigo do avô, muitos anos depois dele ter morrido. Aí eu soube, por mera intuição, que o otimismo haveria de voltar. Não tinha achado ainda o velho disco de Carmen Costa onde ela cantava "vê, estão voltando as flores", mas já sabia que o otimismo haveria de voltar porque assim, no último dia do ano, não convinha ficar de olhos baixos encarando os rodapés e praguejando contra o mundo. Fui educado para ser resignado e para achar que sempre há esperança mesmo aonde não se enxerga nada além de sombras.
Nas ruas o buzinaço já começava muito antes da hora e alguns gritos turbinados por álcool e euforias nostálgicas davam conta que os ponteiros corriam depressa contra o velho relógio do avô que funcionava - mas como? - dentro do velho baú de laca.
Entre cadernos finamente encapados achei velhos diários e calendários antigos de anos em que eu sequer tinha vindo ao mundo. Anotações impessoais na letra miúda do avô davam conta de que o velho - antes de ser velho - gostava de anotar até a quantidade de pertences que tencionava comprar nos dias de feijoada e sempre comentava a qualidade do bacalhau que comia às sextas-feiras. Anotações pueris que não deixavam pistas sobre de que tipo de fibra era feito aquele avô que agora já não existia.
O avô era metódico, quase burocrático, mas vivia de fazer planos para os anos novos que chegavam. Planos organizados, quase burocráticos, mas ainda assim, planos. Eu tentava copiar o avô instintivamente e fazia planos também. Só que nada burocráticos, nada metódicos. Planos estratosféricos, megalômanos, arrojados, conjugados com planos prosaicos. Conhecer Jerusalém, andar sobre as muralhas da China, comer escargots, aprender a nadar, comprar uma bicicleta, jogar mais na mega-sena, comprar um belo escapulário para dar de presente, visitar mais a tal tia solitária que me deu o baú, passar as férias na praia, não falar mal do próximo e ser menos crítico e autocrítico. Dessa vez esperava mesmo que as resoluções de ano novo fossem adiante da primeira semana de janeiro.
Quando janeiro chegasse com seu calor e suas chuvas, suas enchentes e suas correntezas mortais, com tanta gente padecendo pelos erros do Estado, eu haveria de ter forças para lembrar do que prometi a mim mesmo no dia 31 de dezembro. E haveria de ter forças para tentar desvendar, afinal, qual é o significado da única anotação num velho diário do avô que, para ele, era digna de nota. O ano do diário marcado na capa de couro era 1979. O título do escrito era: "31 de dezembro: mas não faz mal, foi só o tempo que passou".
Pois foi então esse tempo que passou tão lento e tão rápido nesse pandêmico 2020 que eu por fim tenho vontade de enfiar de vez no velho baú do meu avô. Aquele mesmo, que muito novo viu e viveu a outra peste pátria que foi a gripe espanhola de 1918. Assim, navegando no mar português das recordações ao redor do meu avô, eu penso em rabanadas e bacalhoadas que ele fazia um dia. E nessa receita, só nessa agora, encontro motivos para crer que o otimismo há de voltar...

Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 9 livros. O mais recente “Devo a eles um romance” disponível para compra no site da editorapenalux.com.br

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