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Os livros que habito

Há muitos livros dentro de mim que esperam vir à luz


Os livros não acabados dentro da gente formam uma biblioteca interna intensa que só nós mesmos conhecemos

Os livros não acabados dentro da gente formam uma biblioteca interna intensa que só nós mesmos conhecemos (Unsplash/Jaredd Craig)

Ricardo Soares*

Lancei um livro novo recentemente. "Devo a eles um romance". Mas há mais livros dentro de mim. Livros tardios que ficaram anos e anos boiando entre o consciente e o inconsciente, esperando – em vão? – o dia de virem à tona. Não sei, sinceramente, se terei disposição para trazê-los à luz, nem responder porque demorei tanto para cuidar ou descuidar deles.

Queria que alguns desses livros fossem mais curtos. Mas, de repente, mais velho, me descubro caudaloso. Um romancista ou quase isso. Justo eu que, quando jovem, não me via cometendo livros grossos. Entretanto, alguns deles estão aí, me rondando, sendo escritos dentro e fora de mim há muito tempo.

Curioso como esses livros antigos são difíceis de parir, ao contrário de dois que publiquei em tempos recentes, concebidos num jorro. Um desses livros antigos é tão antigo que o iniciei muito jovem na ilha de Itaparica, numas férias de verão, quando um foguete da Nasa explodiu nos céus do ano de 1986. Até hoje esse livro vaga numa certa placenta criativa interminável. Não o abomino, mas também não o decifro.

O outro livro antigo foi concebido em 2011, quando a partir da visão de um objeto voador não identificado alcei voos esotéricos ao redor de mim mesmo incentivado também por uma ex-companheira que testemunhou a visão comigo, mas que nunca foi muito fã da minha ficção. Mas devo a ela uma percepção e atenção maior a fenômenos que desconheço.

Os livros não acabados dentro da gente são curiosos. Formam uma biblioteca interna intensa que só nós mesmos conhecemos. Nos auto psicografamos. Os espíritos que me habitam dialogam comigo mesmo e me infernizam em eterno embate entre bloqueio e libertação. Artimanhas e armadilhas da ficção.

Além desses dois romances caudalosos e inacabados, há um volume de contos encerrado, mas que sempre reluto em publicar, assim como um livro de poesias. Há também outro livro caudaloso – que havia mais ou menos organizado e deletei por engano – e que reúne a parte, digamos, mais aproveitável dos meus muitos anos como cronista de jornais, revista e do Dom Total. Há ainda um romance satírico sobre um personagem que não consegue sair de Angola, uma história de redemocratização do Brasil contada pelo método confuso e uma reunião de 365 pequenas historietas passadas em lugares diversos do mundo que compõe o Diário do anonimato do mundo, que saiu pela edição eletrônica da revista Pessoa e que tenho publicando todos os dias no meu modesto blog nesse pandêmico 2020.

Fora tudo isso, há um inédito infanto-juvenil, várias vezes recusado – justo o que considero o melhorzinho – sem falar de dois esboços de romances curtos iniciados durante a pandemia. Ou seja, haja disciplina e empenho para dar conta disso tudo. Se por um lado isso é uma aflição criativa, por outro é um consolo, visto que, se uma crise de criatividade ou um bloqueio me acometesse, eu teria pano para manga para trabalhar nesse pequeno acervo até o fim dos meus dias. E, sinceramente, temo não ter tempo para "cuidar" disso tudo. Vontade não me falta, apesar de me perguntar todos os dias se os livros que habito deveriam emergir na nave mãe de um país tão pouco afeito à leitura, cada vez mais plasmado na desertificação das ideias prontas.

*Ricardo Soares é escritor, roteirista, diretor de tv e jornalista. Publicou 9 livros. O mais recente "Devo a eles um romance" disponível no site da editorapenalux.com.br 

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