Pular para o conteúdo principal

Sobre aborto, leis, portarias e o mundo real


A questão relacionada ao aborto sempre estará envolta em polêmicas, notadamente porque envolve questões morais e religiosas.

Tratemos aqui acerca do aborto necessário, previsto no Código Penal, que descriminaliza tal conduta quando a gravidez resultar de estupro.
Nesse caso, havendo o consentimento da gestante, ou se incapaz, de seu representante legal, o médico procederá ao aborto, sem a necessidade de autorização judicial. Basta que seja feito um boletim de ocorrência para ser apresentado ao médico.
Recente Portaria nº. 2561/2020 do Ministério da Saúde, determina que em caso de aborto decorrente de crime sexual, em atendimento no SUS, deverá ser feito um “Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez”, em quatro etapas: a gestante deverá relatar de modo circunstanciado o evento; parecer técnico do médico precedido de vários exames e profissionais; assinatura da gestante de Termo de Reponsabilidade, de Consentimento Livre e Esclarecido.
Por fim, o médico deverá comunicar o fato à autoridade policial, enviando as evidências materiais do crime. Aqui, há uma completa inversão do papel do médico, a quem caberá avaliar se houve ou não crime de estupro para então realizar o aborto.

O estupro é um tipo de crime que causa grandes traumas nas vítimas, levando muitas delas a sequer comunicar o fato à polícia, por vergonha, por medo, por não querer se expor ao se submeter a oitivas na delegacia, no fórum, potencializando ainda mais o processo de violência sofrido.
Muitas preferem o silêncio, por vezes, escondendo o fato até da própria família.
Maior ainda é o sofrimento da mulher que engravida do estuprador. E quando essa gravidez se dá em adolescentes, a situação só piora.
Foi pensando nisso que o legislador permitiu que, em caso de estupro, possa a vítima abortar, sem incorrer em crime. Em tal situação, exige-se apenas o boletim de ocorrência narrando de forma sucinta o ocorrido, documento de que se valerá o médico para realizar o aborto, com a certeza de que sua conduta está amparada por lei.
Em caso de estupro, cabe ao poder público ter sensibilidade para diminuir os terríveis dramas das vítimas, facilitando seus efeitos, coisa que a citada Portaria só complica.
Talvez, a melhor maneira de tratar desse assunto seja colocando-se no lugar do outro. E se fosse você ou a sua filha a vítima, precisando do SUS?
As dores do mundo real não cabem em uma Portaria.
- Grecianny Carvalho Cordeiro
Promotora de Justiça

Comentários