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Um artigo nada religioso

 De minha parte, tenho medo do diabo, não me atrevo a desafiá-lo ou brincar com ele


A existência do diabo deve ser tratada com humor

A existência do diabo deve ser tratada com humor (Unsplash/Dan Sealey)

Afonso Barroso*

Religião é coisa séria para muitos, fanatismo para outros, fonte de renda para outros tantos e, em muitos casos, arsenal de desavenças, inconformismo e até guerras. Já contei como fui vítima de intolerância religiosa quando estudava no colégio salesiano de São João del-Rei. Um padre cismou que eu havia tirado a vocação de um colega. Ora essa! Eu não sabia nem sei o que é isso, tirar a vocação de alguém. Mas ele cismou, me acusou e me torturou psicologicamente, em nome de Deus, querendo que eu confessasse um pecado que não havia cometido. O episódio marcou minha adolescência e acabou me rendendo um bom dinheiro. É que escrevi um conto baseado nele e fui premiado com um chequinho gordo no Concurso Unibanco de Literatura, o único do gênero para inéditos no Brasil.

O fanatismo religioso me faz lembrar, de vez em quando, o artigo de um padre (ou bispo, não sei bem), que li em uma publicação religiosa, acho que a Folhinha de Mariana. Ele escreveu um texto furioso, descendo a madeira no filme O bebê de Rosemary e comentando um dos fatos tenebrosos que ocorreram após o lançamento desse filme, considerado um clássico do terror.

Uma das várias maldições atribuídas à realização do diabólico filme, dirigido pelo cineasta holandês Roman Polanski, foi a morte da mulher dele, a belíssima Sharon Tate, que estava grávida quando foi assassinada de forma brutal. Fanáticos seguidores de uma seita dirigida pelo facínora Charles Manson, líder de uma seita satânica, mataram-na e ao bebê a facadas. Ao final do artigo, em que parece comemorar a morte da atriz, o padre (ou bispo) escreve com todas as letras: "Dessa vez o diabo não nasceu".

Eu era um jovem estudante quando li o tal artigo e fiquei tremendamente revoltado. Cheguei a falar sobre isso com meu irmão padre, Luiz Barroso, mas ele desconversou, dizendo que se tratava apenas da opinião pessoal de um articulista. Mas, que diabo, o autor era um religioso católico, e eu jamais esqueci as palavras dele. Não imaginava que alguém com fé em Deus, que havia feito votos de fé, castidade e religiosidade ao receber as ordens sacerdotais, pudesse ter um coração tão empedernido. Ainda que quisesse atribuir o assassinato da bela esposa do cineasta a um castigo divino, ainda assim, o que ele deveria fazer, como "servo de Cristo", era orar pela alma dela e pedir a Deus que a acolhesse no reino dos Céus, quem sabe até pedindo clemência aos assassinos. Em vez disso, considerou que ela estava também grávida do diabo na vida real. Cruz credo!

Assisto atualmente à série Lúcifer, da Netflix, e acho que a existência do diabo deve ser tratada como descrita nos episódios. Com humor. A série conta como o rei dos infernos resolveu tirar férias e usufruí-las em Los Angeles, onde se torna conselheiro da polícia e acaba se apaixonando por uma linda detetive. Vira um diabo do bem, que ajuda a resolver crimes e prender os autores. Não mata, só apavora os meliantes mais renitentes, quando isso contribui para o sucesso das investigações.

De minha parte, tenho medo do diabo, não brinco com ele. Quero-o à distância, a não ser que se disponha a juntar-se a Deus e me ajudar em alguma coisa. Como, por exemplo, escrever crônicas que agradem aos meus abnegados vinte e poucos leitores.

*Afonso Barroso é jornalista, redator publicitário e editor

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