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As tempestades descortinam as nossas falsas seguranças

“Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4, 40)

Dom Jeová Elias*

Após as parábolas anteriores que faziam referência ao Reino, diante da crise da comunidade primitiva, seguem quatro milagres que comprovam a sua chegada nas ações realizadas por Jesus. O sinal realizado neste Evangelho é o primeiro da série. Se o Reino foi retratado como uma semente com sua força imperceptível, agora a comunidade é testada na sua fé, ante os conflitos que enfrenta. O texto de Marcos é um convite para que a comunidade, ameaçada pela perseguição e pela hostilidade de então, confie em Jesus Cristo.

Imaginemos o impressionante cenário descrito pelo Evangelho: a barca estava em alto mar; a noite está escura; surge uma forte tempestade; ondas de água são arremessadas contra a barca, que começa a encher. Justifica-se a angústia dos discípulos e a inquietação diante da aparente indiferença de Jesus, que dorme na popa da barca.

A região geográfica do cenário apresentado pelo nosso texto continha uma grande depressão: 213m abaixo do nível do mar. Aconteciam por lá, em certos períodos do ano, tempestades que acarretavam fortes riscos para as pequenas embarcações da época. Contudo, Marcos não quer descrever esses fenômenos, mas referir-se à crise de fé em meio aos conflitos que a comunidade enfrentava. Na barca, açoitada pela tempestade, está toda a comunidade de ontem e de hoje.

É necessário passar à outra margem. O Evangelho, semente do Reino, deve chegar a outros povos, mas a travessia é penosa, exige disposição para navegar. O mar é uma síntese de toda força hostil ao projeto do Reino inaugurado e proposto por Jesus Cristo. No entanto, na barca se encontra Jesus Cristo, a comunidade não navega sozinha. Deus não permite que afundemos, mas devemos remar juntos, com Jesus ao nosso lado, para vencer as tempestades. 

O Evangelho deste domingo iluminou a bênção que o Papa Francisco dirigiu ao mundo, no dia 27 de março de 2020, no pátio da Basílica de São Pedro, em Roma, suplicando a Deus ânimo diante do início da pandemia que assolava a humanidade. Com certeza, lembramos os gestos do Papa no vazio chuvoso e silencioso da praça, seus passos lentos e sofridos, mas não guardamos as suas palavras. Foram palavras proféticas e alentadoras, que nos animam neste tempo de pandemia e em qualquer tempo de tempestade. Aqui, retomo algumas ideias que poderão nos fortalecer em períodos de águas impetuosas.

O Papa inicia a sua homilia situando a cena no tempo: ao entardecer. Ele constata que a humanidade experimenta a sobrevinda inesperada de uma noite escura e duradoura; que foi surpreendida por tempestades furiosas e se deu conta de que todos nos encontramos no mesmo barco e devemos remar juntos, na mesma direção; que não é possível cada um remar por conta própria, mas somando forças rumo ao mesmo objetivo.

O Papa menciona a dificuldade dos discípulos, apavorados com a possibilidade de naufragar, diante da suposta indiferença de Jesus: Ele dorme tranquilamente na proa. É a única vez que vemos Jesus dormindo nos Evangelhos. Eles o despertam e são advertidos, após a imposição do silêncio ao vento e ao mar: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4, 40). Para o Papa, não se trata de descrença em Jesus, pois eles recorrem a Ele, mas da Sua aparente indiferença. Dói a indiferença de quem amamos diante do nosso sofrimento! Mas ninguém se preocupa mais conosco do que Ele. Com a sua presença, a barca jamais afundará. Eles não perecerão. O vento desapareceu e tudo ficou calmo.

O Papa Francisco, inúmeras vezes, nos adverte quanto a outro vírus mais perigoso que o Coronavírus: o da indiferença, posto em evidência neste tempo de pandemia, em que parece melhor não ver o que passa ao nosso redor. Não devemos nos acostumar com a indiferença. “Deus nunca é indiferente. A essência de Deus é a misericórdia, que não consiste apenas em ver e comover-se, mas em responder com ação. Deus sabe, sente e vem cuidar de nós” (Vamos sonhar Juntos, p. 26). 

A tempestade, diz o Papa naquela pregação, descortina as nossas falsas seguranças, expõe nossos limites e mostra a necessidade que temos de viver em comunidade, como irmãos, de mãos dadas. “O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a essas horas em que tudo parece naufragar”.

Ao questionar por que Jesus não se importa diante do iminente perigo que enfrentam, os discípulos são interpelados por Ele, depois de fazer o vento cessar e vir a calmaria: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (v. 40). São repreendidos por terem medo e pela falta de fé. Há um medo sadio, como um mecanismo natural de defesa diante de certos perigos, mas há um medo sem motivo aparente. No caso da tempestade, não há motivos para temer porque o Senhor navega com eles. Esse medo sem motivo causa dano, dificulta a caminhada, impede conquistas importantes. O medo de navegar impossibilita chegar à outra margem.

Na Exortação Apostólica Evagelii Gaudium, o Papa Francisco menciona sete vezes a palavra medo, geralmente nos exortando a superá-lo. Somos convidados a não ter medo de anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões (n. 23); a não temer ir às encruzilhadas do caminho para encontrar os excluídos (n. 24); a não ter medo de rever os costumes que não estão ligados ao núcleo do Evangelho e que já não respondem aos novos desafios (n. 43). O único medo sadio proposto pelo Papa é o de nos fecharmos na falsa proteção das estruturas, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, diante do sofrimento de uma multidão faminta (n. 49). 

Continuamos a viver uma longa noite tenebrosa neste tempo de pandemia, mas não estamos sozinhos no barco: Jesus navega conosco e também muitos irmãos e irmãs, que somam forças e nos encorajam. 

Concluo esta reflexão suplicando ao Senhor que cuide de todas as pessoas sofridas; que não deixe naufragar as que são tentadas a perder a fé e a esperança; que nos faça fortes e corajosos diante da tempestade que nos assola, para que possamos também ajudar e consolar tantos irmãos e irmãs que sofrem. Que semeie o senso de justiça e de responsabilidade no coração das autoridades públicas, para que não fiquem indiferentes diante de tanto sofrimento do nosso povo.

*Bispo Diocesano de Goiás

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