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Rezando a oração do abandono

Por Alvim Aran*

“Meu Pai, a vós me abandono”, é assim que se inicia uma das mais belas e profundas orações escrita por um homem após Jesus, nosso irmão mais velho, nos ensinar a chamar Deus de Pai, ou melhor, de abbá, isto é, paizinho querido. E só através desse entendimento de Deus como paizinho querido, aquele que nos ampara, é que seremos capazes de dizer tão bela frase.

Uma frase dita por Irmão Carlos de Foucauld, que compõe a oração do abandono. A segunda frase diz que Deus pode fazer de nós o que Ele quiser, ou então na primeira pessoa do singular: “Fazei de mim o que quiserdes”, e só um filho que conhece o Pai consegue dizer isso de forma verdadeira. Como Jesus, ao dizer: “Pai, afasta de mim esse cálice, contudo não seja feita a minha vontade, mas a tua”. Poderia continuar com as palavras de Irmão Carlos: “O que de mim de mim fizerdes eu vos agradeço”.

Em qual nível de santidade devemos estar para repetir tais palavras? Não sabemos, e não procuraremos atos ou palavras para tentar expressar tal ideia. Se tentarmos fracassaremos. Mas ilustraremos de tal forma que o leitor desse texto fará sua própria reflexão: imaginem alguma pessoa próxima que convivemos bastante e temos confiança. Somos capazes de deixar essas pessoas entrarem em nossas casas, em nossas vidas, participar conosco dos momentos alegres ou tristes, e costumamos falar quando nos visitam: “Entre, fique à vontade, a casa é sua”.

A pessoa fica alegre e volta várias vezes, mas antes disso teve um caminho percorrido, uma relação construída. Com Deus é a mesma coisa, só teremos uma forte intimidade com Ele através de um caminho feito ao longo de nossa história. Com altos e baixos, com acertos e desacertos, e tudo isso é humano. E precisamos desenvolver essa história com Deus para podermos dizer: “Estou pronto para tudo, aceito tudo contanto que a vossa vontade se faça em mim e em todas as vossas criaturas”.

“Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, quantas vezes durante nossas orações repetimos isso, mas não nos damos conta da força que essas palavras trazem. Será que queremos que a vontade de Deus se realize em tudo e em todos? Isto é, um mundo mais humano, fraterno, solidário, amoroso, compassivo, bondoso e alegre. Para isso é preciso aceitar a vontade de Deus, que nem sempre é a nossa. Aí a conversa muda, somos íntimos de Deus mesmo? Ou Deus é aquele amigo nosso que temos por perto enquanto seguem o que nos agrada, mas no tempo que não concorda com o que se fala vira as costas.

Virar as costas para Deus é muito fácil, ocorre sempre que não agimos como Jesus agiu. Quer saber como Jesus agiu? Leia a história de Irmão Carlos, Irmão Francisco, Irmã Dulce, Irmão Helder e Irmã Dorothy. A resposta está na vida deles e tantos outros santos. Uma vida doada aos irmãos, uma vida entregue a Deus. E só quando entendermos isso seremos capazes de continuar: “Entrego minha vida em vossas mãos, eu vo-la dou meu Deus, com todo o amor do meu coração”.

Percebe, caro leitor, que isso é um caminho construído por nós e Deus, Ele que nos chama e nós que respondemos ao chamado. Ele nos convida a uma amizade sincera e verdadeira, onde podemos e devemos compartilhar com Ele tudo que fazemos em nossa vida, igual quando contamos as coisas para nossos amigos que confiamos. Precisamos confiar em Deus, mostrar a Ele nosso lado bom e ruim. Se fiz algo bom, vou à missa e ofereço. Se fiz algum ruim, vou à missa e ofereço também, mas pedindo a Deus a graça da mudança para melhor.

Não porque Deus é juiz, que vai condenar, julgar os vivos e os mortos, mas porque Ele é abbá, porque o amamos e ele nos ama, e quem ama cuida. Assim podemos rezar como Carlos: “porque eu vos amo e porque é para mim uma necessidade de amor dar-me, entregar-me em vossas mãos sem medida, com infinita confiança”.

Confiança é uma palavra forte, pode significar vulnerabilidade, isto é, se desarmar, se livrar dos mecanismos de defesa diante de algo ou alguém. Que seja diante de Deus, aceitar o plano dele em nossa vida, não abaixar a cabeça e seguir em frente. Mas não uma confiança cega, mas sim uma que nos leve a questionar Deus e se deixar ser educado por Ele. Pode parecer estranho o termo “questionar Deus”, mas se existe uma relação de amizade reciproca entre Pai e Filho, isso não é estranho, é normal, pois há diálogo.

Onde não há dialogo existe desconfiança, uma palavra que não deve existir em nossa vida religiosa, pois Deus é nosso Pai. Assim Irmão Carlos termina a oração do abandono. Que possamos, por interseção de Irmão Carlos, nos abandonar em Deus. Aceitar ser amado por Ele, para que possamos amar nossos irmãos e irmãs pelo mundo, e juntos, de mãos estendidas ofertar o que de graça recebemos, ou seja, amar sem medidas, pois o amor de Deus é gratuito.

*Aluno do 3º ano de Filosofia, Diocese de Guanhães, Seminário Maior de Diamantina-MG.

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